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28 de dezembro de 2007

Jesus Nasceu!

Jesus nasceu!
Nosso coração se enche de alegria!
Chegou o Menino Deus!
Chegou a salvação!Jesus nasceu!Nos foi dado um filho, um menino!
Para acolher os fracos, para acolher os pequeninos.Jesus Nasceu!Nasceu frágil e inseguro!
Para nos dar forças e segurança no caminho.
Jesus nasceu!
Nasceu pobre e faminto!
Para enriquecer a muitos e saciar de pão os excluídos.
Jesus nasceu!Nasceu numa gruta fria,entre animais que lhe deram aconchego e calor.
Jesus nasceu!Nasceu entre Maria e José!
Veio colocar em prova nossa fé e encher nosso ser de esperanças.
Jesus nasceu!

Nasceu proclamando a Boa Novada paz e da solidariedade para todos de boa vontade.
Jesus nasceu!
Veio trazer a verdadeira vida!
Para que renascidos com Ele, possamos desejar a todos: Feliz Natal!

23 de dezembro de 2007

Quatro histórias de Natal

Frei Betto*

I
Em Belém, Caleb atende à porta. Ao ver quem bate, fecha-a de imediato, enquanto o visitante insiste aos murros, como se quisesse derrubar a parede.
A mulher, Cozbi, indaga quem é. "Meu irmão". "O José?", pergunta ela. "Sim, teve o descaramento de engravidar uma jovem de Nazaré sem nem terem se casado, como manda a nossa lei. Agora vem com a buxuda pedir abrigo em nossa casa. Como hei de acolher quem viola os preceitos ditados por Javé a Moisés? Eles que procurem outra freguesia".


II
Eleazar realizou, enfim, seu velho sonho: um pequeno sítio nas proximidades de Belém. No pasto, misturou vacas, cabras e cordeiros. Montou um cocho de madeira e armou, em torno, um toldo de bambu coberto com folhas de palmeira.
De madrugada, Efraim, pastor contratado pelo dono da terra, bate forte pelo lado de fora da janela. O patrão, sonolento, parece receber como pesadelo a notícia: "Invadiram suas terras, meu senhor. Tem um casal acampado lá na estrebaria. Escutei um choro miúdo. Parece que a mulher deu à luz um menino."
"Avise a guarda. Ao despontar do sol cuidaremos de tirá-los de lá", resmunga Eleazar interessado em retomar o sono.
Dia seguinte, o Diário de Belém dá em manchete: "Família sem-teto e sem-terra invade propriedade rural na periferia da cidade". No corpo da notícia: "Moça de Nazaré, engravidada por carpinteiro, teve parto em pleno pasto. A criança é do sexo masculino".


III
Guiadas pela estrela de Davi, as três rainhas magas, Ada, Míriam e Sela, chegam à manjedoura. Após louvarem a Javé, aquecem um caldo de galinha para Maria, alimentam José com pães ázimos recheados com grão-de-bico, lavam as fraldas do bebê, varrem o estábulo. Ao buscar água na fonte, comentam entre si: "O menino em nada se parece com o pai..."


IV
A notícia do nascimento do menino não tarda a chegar ao palácio de Herodes, em Jerusalém. Ele fica alarmado; afinal, é o rei dos judeus, malgrado o sangue árabe que corre em suas veias. Sabe, porém, que tem os dias contados, carcomido pelo cancro. A proximidade da morte o aterroriza tanto quanto os agouros que lhe ameaçam o trono.
Pede a Corinto, comandante da guarda, convocar reunião em palácio dos chefes dos sacerdotes e dos doutores da lei, os escribas.
O convite trazido por Corinto deixa Anás excitado. No íntimo, considera-se o verdadeiro rei da Palestina. Comparece em companhia de duas dezenas de membros do sinédrio - o conselho supremo do poder judaico, integrado por 71 notáveis, e do qual ele, na condição de sumo sacerdote, é o presidente.
Herodes é introduzido no salão a bordo de uma liteira de marfim sustentada por quatro escravos. Anás mal consegue controlar sua curiosidade por conhecer o motivo de tão inesperada convocação. O rei quer saber dos sinedritas onde e quando deve nascer o Messias que tanto aguardam. Gamaliel cofia sua barba em leque e diz: "Nascerá em Belém, na Judéia, pois está dito pelo profeta Miquéias - E tu, Belém, de modo algum és a menor entre as cidades de Judá, pois de ti sairá para mim aquele que deve guiar Israel. Quando isso ocorrerá - escusa-se o doutor da lei -, não está ao alcance do nosso saber."
Herodes não admite que a sua soberania seja desafiada por rumores em torno de um menino-messias. Ordena que a guarda de operações especiais, comandada pelo espadaúdo Tirano, dirija-se a Belém e passe ao fio da espada todas as crianças do sexo masculino com menos de dois anos de idade.
Ao amanhecer, as tropas herodianas ocupam Belém. Os batedores vão de casa em casa. Ordenam que todos os meninos de colo, e aqueles que ainda não caminham com firmeza, sejam trazidos à rua por suas mães. As outras mulheres devem permanecer trancadas em casa, com portas e janelas fechadas, em companhia de homens e crianças.
Toda a gente de Belém pressente que, desta vez, Azrael, o anjo exterminador, voltou-se contra ela. As mães ficam separadas dos filhos que, nus, são deitados lado a lado ao longo das ruas. Os bebês choram um choro de abandono, insistente, como se um presságio os movesse a sugar com avidez o ar que, em breve, já não poderão respirar. De rostos virados para as paredes das casas e dos muros, e vigiadas por soldados, as mães riscam as pedras com as unhas e lavam o musgo com as lágrimas.
Após observar cada criança à procura de algum traço messiânico, Tirano dá o sinal para a degola. O carrasco agacha-se, puxa a cabeça da vítima para esticar o pescoço, ergue o cutelo e, num golpe, separa o crânio do corpo. Algumas mães, desesperadas, ousam voltar-se na direção dos filhos; são silenciadas pela lâmina do punhal que lhes traspassa o coração. Tirano passa ao fio de sua própria espada as mulheres que furam o cerco das sentinelas e se abraçam aos filhos como se quisessem fazê-los retornar ao útero.
Desde essa trágica manhã em Belém, os poderosos cruéis tornaram-se conhecidos como tiranos.


*[Autor da biografia de Jesus "Entre todos os homens" (Ática), entre outros livros].


21 de dezembro de 2007

Para que este Natal seja novo e feliz

Marcelo Barros*

É bom se entender sobre o que desejamos uns aos outros, quando expressamos nossos votos de Feliz Natal. As comunidades cristãs fazem memória do nascimento de Jesus para celebrar como acontecimento atual a presença divina no mundo. Neste contexto, o Natal é uma celebração que não apenas repete um aniversário e sim atualiza um mistério: na pessoa de Jesus de Nazaré, Deus assume, hoje, a humanidade e a diviniza. Para tantas outras pessoas que se dizem Feliz Natal sem referência explícita ao nascimento de Jesus e sem celebração religiosa, o desejo é que a alegria e a paz proclamada pelos céus se atualizem gratuitamente para todo universo.
Neste mundo em que convivem pessoas de tantas culturas diferentes e no qual o elemento religioso ainda é motivo de conflito e provoca guerras, a graça do Natal é valorizar o caminho que tantos grupos e organizações civis fazem para tornar este mundo um grande presépio, no qual a fragilidade do ser humano seja revestida pela força do amor divino. Esta revelação de que todos os seres humanos, cada qual em seu caminho próprio e do seu modo, têm esta vocação de conceber no intimo do seu ser a divindade dá um caráter sagrado a todas as culturas, chamadas a dialogar, às religiões que, em sua diversidade, podem se complementar e mesmo à vida cotidiana que pode perder a cor da monotonia pelo anúncio de que algo de novo está nascendo. A própria troca de presentes e de votos de feliz Natal revela uma sociedade, na qual os gestos de delicadeza e relação humana ainda encontram sentido.
Em países como Costa de Marfim, muçulmanos celebram o Natal com os cristãos, assim como, no final do Ramadam, os cristãos vão à mesquita para participar da festa com os irmãos do Islã. A sociedade multi-cultural não se constrói pela abolição das particularidades próprias de cada cultura e sim pela possibilidade destas valorizarem umas às outras e conviverem em paz.
Em cada Natal, cristãos e não cristãos podem ver em Maria grávida de Jesus, a figura de toda mulher que, em nossos dias, se abre com confiança ao mistério da vida e, mesmo em situações difíceis e contraditórias, percebe no silêncio e na escuta da história o sopro do Espírito. A parábola de José que recebe em sonhos o aviso de Deus sobre sua vocação de guardião do filho de Deus nos confirma: todos nós podemos interpretar o futuro a partir dos pequenos sinais de que a história pode mudar e dar espaço a uma vida nova.
Neste Natal, seja você quem for, o melhor presente que pode se dar a si mesmo e aos outros é colocar-se na pele dos pobres pastores de Belém que receberam a visita dos anjos anunciadores da paz e da salvação. Em meio às violências cotidianas do mundo, podemos pastorear a vida e construir a paz. Para isso, às vezes, precisamos estar dispostos a caminhar, mesmo quando a viagem é longa e cansativa até o presépio onde nos espera o mistério.
O conto simbólico dos astrólogos que a devoção popular chama de reis magos nos revela a missão dos intelectuais que assumem a condição humilde de quem procura, aprendem a interpretar o que, hoje, a natureza nos diz e se deixam guiar, enamorados, pela estrela guia.
Alguns grupos espiritualistas valorizam muito a figura dos anjos, novamente, em moda. O termo grego anjo significa mensageiro. Até Jesus Cristo, como enviado do Pai, recebe este nome. Nós todos somos anjos uns para os outros, quando cuidamos das feridas uns dos outros, como fez o anjo Rafael com Tobias e acolher em nossos joelhos tantos Cristos pregados nas cruzes que, a cada dia, o mundo inventa e recria. Natal é boa ocasião para agradecer a cada pessoa ao nosso lado que, durante todo este ano, foi um verdadeiro anjo da guarda e nos defendeu das mesquinharias do dia a dia.
Finalmente, na história que o evangelho conta do Natal, o que sempre me surpreende não é apenas o esplendor e a beleza do que foi anunciado. Crer que, no meio da noite escura, o céu pode se encher de luz e a tristeza dos pastores cansados pode dar lugar à alegria de participar do cântico dos anjos é sempre um desafio. Mas, o mais difícil mesmo é reconhecer na figura marginal da criança que jaz no presépio a luz do amor divino. Tudo o que os pastores encontram é uma família paupérrima de migrantes sem teto que acalentam seu filho recém-nascido em uma estrebaria.
No Mosteiro de Goiás, em cada celebração da noite do Natal, quando os jovens fazem um presépio vivo, eu me comovo ao ver a criança recém-nascida que eles trazem para fazer o papel do menino Jesus no presépio. Aquela criança pobre não é apenas um ator. É o sinal vivo da presença permanente de Deus nos mais frágeis e pequeninos. Mas, afinal, aquela criança que, no meio da noite, dorme tranqüila no presépio e nem sabe que é o centro de uma celebração de Natal, não é um pouco a imagem de todos nós, no presépio do mundo?
Neste Natal, o Espírito de amor salva a criança que dorme no mais íntimo de cada um/uma de nós e nos chama a peregrinar até este presépio secreto de nossa vida, no qual podemos, novamente, refazer as brincadeiras de criança, recitar poesias e nos maravilhar com as histórias de amor das quais nós mesmos somos protagonistas.
Os desafios do cotidiano continuam duros. É preciso crer nos que cantam a paz e não nos que querem destruir o que de novidade índios, lavradores e seus aliados estão realizando na Bolívia, Venezuela, Equador e em todo o nosso continente. Quem escuta mais profundamente a palavra do Natal adere ao apelo profético de Dom Luiz Cáppio para salvar o rio São Francisco e espera que, em meio às políticas neo-liberais que transformam o Brasil em um imenso canavial, para produzir Etanol, os pobres de hoje continuem escutando o cântico do céu e o grito da terra e se mobilizem para que, em meio à noite, uma vida nova possa surgir.
A vocês todos, feliz Natal.


*Monge beneditino, teólogo e escritor. Tem 30 livros publicados.

18 de dezembro de 2007

Sim a Dom Luiz Cappio, Não à Transposição do Rio S. Francisco

Marcos Arruda*

Pres. Lula da SilvaPor favor, Presidente. Dom Cappio não está só. O gesto amoroso que ele faz com a greve de fome - amor ao povo brasileiro e amor à Natureza e ao Velho Chico - não é um gesto isolado, mas sim povoado de presenças de milhões pelo Brasil afora e também pelo mundo! Uma pequena mostra será o Jejum Solidária que muitxs estaremos fazendo no Brasil e no exterior, em apoio à causa e como clamor pela vida do Velho Chico e de Dom Cappio! O gesto de Dom Cappio, e o nosso, é um gesto moral, pois simboliza com eloqüência a FOME a que está sendo levado o Rio S. Francisco e sua imensa Bacia. Mas é igualmente um gesto político, pois questiona uma opção que não tem NADA de técnica. Técnica, e solidamente científica, seria a opção pela revitalização, pois através dela estariam sendo beneficiados 34 milhões de pessoas da Bacia do Velho Chico. Sendo eficiente e ecologicamente sustentável, é tecnicamente e cientificamente a mais sábia e correta. É também um gesto de repúdio contra a militarização das obras de transposição, que atentam contra o direito sagrado do povo de indignar-se e protestar, e de expressar por diversas formas, pacíficas, seu repúdio ao projeto e sua determinação de defender seu meio de vida e a integridade do seu ecossistema. A opção pela transposição é tecnicamente equivocada. Ela NÃO vai resolver o problema da seca, nem as carências de água e de alimentos da população do Semi-Árido. Ela toma o Semi-Árido como o inimigo, quando os inimigos são outros: latifúndio, agronegócio, busca de lucro fácil e imediato através da exportação, ausência de qualquer real preocupação com uma solução estrutural e sustentável para a fome, a pobreza, a miséria, a falta de acesso à terra, aos meios de torná-la fértil, a uma assistência técnica eficaz, ao fim das violações dos direitos dos povos indígenas, à educação, à saúde, enfim, aos direitos de cidadania que garantam uma vida humana e digna. Presidente, enquanto o Brasil 'economiza' R$ 106 bilhões até outubro para pagar juros aos banqueiros, já excessivamente ricos, o Nordeste de onde você veio continua sofrendo de doenças e mortes evitáveis. Seu gesto corajoso de retirar os 41 blocos do campo de Tupi do 9o. leilão precisa ser repetido, cancelando o projeto faraônico, elitista e irresponsável de transposição. E optando pela revitalização, pelo milhão de cisternas, pelas 140 técnicas alternativas e ecologicamente sustentáveis, pelas 530 obras previstas no projeto da Agência Nacional das Águas. Pela REVITALIZAÇÃO DE TODA A BACIA DO RIO SÃO FRANCISCOPor um Projeto de Convivência com o Semi-áridoPelo ARQUIVAMENTO DO INSANO E FARAÔNICO PROJETO DE TRANSPOSIÇÃO DO VELHO CHICO!Pelo respeito à sua própria palavra, Presidente, dada há dois anos ao Bispo Dom Cappio, de que a transposição não seria levada adiante sem uma ampla discussão democrática com a população! Prof. Marcos ArrudaPACS - Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul


*Socioeconomista e educador do PACS - Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul, Rio de Janeiro, e sócio do Instituto Transnacional

Natal de Dom Cappio

Frei Betto*

Lá está o bispo, dom Luiz Flávio Cappio, no sertão da Bahia, decidido em sua greve de fome contra a transposição do Rio São Francisco.
O rio, que corta o coração do Brasil, leva o nome do santo padroeiro da ecologia, devido ao seu amor à natureza, com a qual mantinha relação de alteridade e empatia: Irmão Sol, Irmã Lua.
O que poucos notam é que o mentor de dom Cappio era, no século XIII, um crítico radical dos primórdios do capitalismo. O feudalismo ruía por sua inércia e os burgos, as futuras cidades, despontavam sob as luzes da redescoberta de Aristóteles e os novos empreendimentos mercantis.
Bernardone, pai de Francisco, rico proprietário de manufatura de tecidos, importava da França as tinturas para colorir seu produto. Sua admiração pela metrópole levou-o a batizar o filho em homenagem à França - Francesco.
A miséria, até então, campeava na Europa em decorrência de guerras e da peste. O mercantilismo gerou, pela primeira vez, relações de trabalho promotoras de exclusão social. Francisco solidarizou-se com as vítimas da nascente manufatura. Ao despir-se na praça de Assis, todos entenderam o gesto para além de simples ato de despojamento. As roupas produzidas pelo pai estavam conspurcadas pela tecnologia que condenava artesãos à perda de seu ofício e, portanto, à miséria.
Hoje, o franciscano dom Cappio se posiciona ao lado das vítimas da transposição das águas do São Francisco. O PT, historicamente, era contrário ao projeto. E também contra a CPMF. Uma vez governo, mudou, como, aliás, mudou em tantas outras coisas. Mudou para não efetivar as mudanças prometidas, como a agrária. Mudou para se desfigurar como partido dos pobres e da ética. Mudou para ficar mais parecido com seus adversários políticos.
Em Sobradinho (BA), na capela consagrada ao santo que dá nome ao rio, o bispo faz seu gesto solitário, embora alvo, no Brasil e no exterior, de muitos apoios solidários. Sua primeira greve de fome, por 11 dias, foi em 2005. Dom Cappio recusou alimentos até que o governo prometesse rediscutir o projeto e promover a revitalização do rio. Segundo o bispo, o Planalto não honrou o compromisso.
A obra de transposição está orçada em R$ 5 bilhões. Cornucópia na qual estão de olho as grandes empreiteiras e o agronegócio. Dom Cappio desconfia de que a transposição beneficiará, não os pobres da região, que vivem da pesca e do cultivo familiar, e sim o grande capital.
Quem já viu governo fazer obra de vulto para beneficiar pobre? Nem sequer o governo Lula investiu suficientemente no programa de construção de 1 milhão de cisternas de captação de água da chuva, que poria fim às agruras da seca no semi-árido. Apenas 25% das cisternas foram construídas, assim mesmo graças ao apoio da iniciativa privada. Cidades sem suficiente saneamento são beneficiadas por viadutos para o conforto de quem transita em carros...
Quem terá acesso à água transposta? A seca ou a cerca? Não faz sentido esse projeto numa região em que ainda predomina o latifúndio e cuja população, cerca de 12 milhões pessoas, não tem acesso à propriedade da terra. No projeto não são incluídas as 34 comunidades indígenas e os 153 quilombolas encontrados em sua área de alcance.
O próprio organismo que responde pelas bacias hidrográficas, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, está contra o projeto, que ignora as estruturas sociais arcaicas da região - o que significa, na prática, fortalecê-las.
O que dom Cappio reivindica é simples e democrático: que o governo debata o projeto com a sociedade, sobretudo com os ribeirinhos do São Francisco. A obra terá profundo impacto em toda a extensão territorial do país e, sobretudo, reflexos ambientais e sociais.
Dom Cappio tem fome de justiça, uma bem-aventurança, segundo Jesus no Sermão da Montanha. Seu Natal é o da manjedoura, lá onde a família de Maria e José, sem-teto e sem-terra, faz nascer a esperança de que a população da bacia do São Francisco não venha, em futuro próximo, ser conhecida também como sem-rio.

[Autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco), entre outros livros].

*Frei dominicano.

14 de dezembro de 2007

Transcendência-Imanência-Transparência

Leonardo Boff*

Não há tradição cultural que não se refira a um Princípio criador ou a uma Energia originária ou simplesmente a Deus. A grande questão é como expressar essa Realidade. Aqui, mais que os teólogos que falam sobre Deus, contam os que falam com Deus, como os místicos e os profetas, cujo testemunho não pode ser negado. Na história do pensamento se delineiam três maneiras de falar com referência a Deus.
A primeira fala de transcendência. Deus é tão outro que tudo o que dizemos dele é mais mentira que verdade. O melhor é calar ou apenas sorrir amavelmente como Buda.
A segunda fala de imanência. Deus é experimentado de forma tão intensa que ele se anuncia em cada coisa. Assim vem enraizado dentro do mundo. E é chamado por mil nomes.
A terceira fala de transparência. Busca um caminho intermédio. Deus não pode ser tão transcendente, pois se assim fosse, como saberíamos dele? Ele deve ter alguma relação com o mundo. Anunciar um Deus sem o mundo faz, fatalmente, nascer um mundo sem Deus. Também não pode ser tão misturado com as coisas que acaba sendo uma parte deste mundo. Se Deus existe como as coisas existem, então Deus não existe. Ele é o suporte do mundo não porção dele.
É aqui que tem sentido a transparência. Ela afirma que a transcendência se dá dentro da imanência sem perder-se nela, caso contrário não seria realmente transcendência. E a imanência carrega dentro de si a transcendência porque comparece sempre como uma realidade aberta a intermináveis referências. Quando isso ocorre a realidade deixa de ser transcendente ou imanente. Ela se faz transparente. Encerra dentro de si a imanência e a transcendência. Tomemos o exemplo da água. A água é água, jorrando da fonte (imanente). Mas é mais que água. Simboliza também a vida e o frescor (transcendente). Ao transformar-se em símbolo de vida e frescor, a água se torna transparente para estas realidades. E o faz por ela mesma e nela mesma.
Essa talvez seja a forma mais sensata de falar sobre Deus e a partir de Deus. Na forma do paradoxo. Por um lado devemos afirmar que todas as nossas palavras são inócuas. De Deus não podemos fazer nenhuma imagem. Por outro lado, não podemos dizer que Deus é o totalmente indeterminado, qualquer coisa vaga, um fundo sem fundo. A realidade de Deus (não sua imagem) é um concreto concretíssimo, o ser em plenitude, portanto uma realidade concreta, mas sempre para além de qualquer concreção. É representado pela água mas ele não é água. Identificar água e Deus é cair na idolatria.
Nesse paradoxo a transparência ganha relevância. Ela faz que o inatingível (transcendência) se torne atingível através e dentro de algo concreto (imanência), mas transfigurado-o em símbolo (transparência). É o que o cristianismo afirma de Jesus. Ele é um camponês/artesão mediterrâneo (imanente), mas que viveu de tal modo (transparente) que nos permitiu entrever Deus (transcendente). "Quem vê a mim, vê o Pai". Como? Na forma como se dirigia a Deus, chamando-o de Paizinho querido (Abba), o que supõe que se sentia seu filho. Depois, agindo de um jeito que sua existência era uma pró-existência, vida para os outros, especialmente, os últimos e desprezados. O que disse e fez, foi para nos induzir a ter a mesma atitude que ele teve. Assim descobriremos que somos também filhos e filhas, em comunhão com ele.
Ele se fez transparente para Deus, não rebaixando os que vieram antes dele, mas radicalizando seu dinamismo, tornando-se um ponto referencial. Deus, então, está no mundo, mas para além dele.

*Teólogo e professor emérito de ética da UERJ

13 de dezembro de 2007

Atualizar as razões de esperar

Marcelo Barros*

Nos Estados Unidos e nos países que têm a mesma referência cultural, o dia nacional de ação de graças, celebrado, a cada ano, na última quinta-feira de novembro, tem o sabor de final de ano e revisão de uma etapa percorrida. É uma festa, fruto do capitalismo, que considera a acumulação de bens como graça divina. As Igrejas cristãs, embora sejam sempre tentadas pela mesma heresia, sabem que a organização atual do mundo não vem de Deus e a desigualdade social e econômica vigentes o ofendem. O Evangelho é a boa notícia de que este mundo pode mudar e o projeto de paz e justiça, inspirado por Deus, pode se realizar, como elemento transformador da vida e de toda esperança humana.
Sem dúvida, é ingenuidade pensar que, por si mesmo, com o tempo, as coisas melhoram e, seja como for, o amanhã será melhor do que hoje. A esperança verdadeira não pode ser mera projeção no futuro. Já nos duros anos da ditadura, cantávamos com Vandré: "Esperar não é saber. Quem sabe faz a hora. Não espera acontecer...". Quem se demite de agir agora não tem direito de esperar nada do futuro. Esperar não é apenas aguardar. É engravidar o amanhã pela atuação responsável no aqui e agora. Também não se pode confundir a esperança com a projeção de nossos desejos utópicos. A esperança mais profunda pode incluir o desejo, mas tem uma raiz mais objetiva. Em um livro de meditação sobre a esperança cristã, escrito nos anos 60, o padre Comblin escrevia: "Esperar não é desejar. É obedecer (no sentido do antecipar profético) ao caminho que Deus nos aponta" (A maior esperança, Ed. Paulinas).
Há tradições, como a antiga religião greco-romana, que desenvolveram uma visão do tempo mais cíclica e menos histórica. Alguns grupos espiritualistas atuais têm uma visão determinista da vida, baseada nas leis de causa e efeito e na inexorabilidade do Carma. No Candomblé de tradição iorubá, Orumilá é o Orixá que abre às pessoas o Odu, ou caminho do destino. No sistema Ifá, são 16 odus que são consultados para saber qual o destino (odu) de cada pessoa. Entretanto, há certa liberdade de escolha. Uma vez, ao tratar deste assunto, uma mãe de santo afirmou: "Você pode fazer o que quiser, mas é bom saber com que material conta. Se me dá laranjas, posso fazer suco, doce, salada de fruta, mas não posso, por exemplo, com laranja salgar uma carne. E não adianta protestar porque laranja não serve como sal para uma carne. Não se trata de fatalismo ou sina e sim de descobrir como na vida de cada pessoa se desenvolve o projeto de amor divino dado a todos".
De um modo ou de outro, muitas religiões e caminhos espirituais, tanto antigas tradições orientais, como as culturas indígenas e negras, embora com termos diversos e através de seus mitos próprios, apostam em uma visão de esperança como a confiança lúcida e operante na realização progressiva dos desígnios divinos para o mundo. Há quem prefira chamar esta esperança de fé.
A própria Bíblia diz: "Pela fé, Abraão partiu, sem saber para onde ia" (Hb 11, 8 ss). Assim, para a fé judaica e cristã, a esperança significa viver, no aqui e agora, uma confiança na promessa divina que se concretiza em uma atitude de construir o futuro. A promessa divina é raiz de esperança porque ela se compromete com a mudança da história. A promessa só tem sentido quando muda o rumo dos acontecimentos e nos faz apostar no contrário de todos os prognósticos racionais. Na Bíblia, a promessa divina é assim: abre o útero das estéreis e reinverte a ordem vigente. Derruba os poderosos e eleva os pequenos. Assim, ela dá à esperança uma raiz própria: a confiança amorosa no futuro que se abre para nós. Podem acontecer coisas terríveis. Pode ser que não tenhamos respostas para as grandes questões da existência. Apesar disso, optamos por confiar que a vida tem sentido e é possível construir para a humanidade e para o planeta Terra um futuro mais feliz.
Fora do ambiente das tradições espirituais, a esperança ainda precisa de mais fortes razões para se justificar e se alimentar. Apenas uma análise lúcida da realidade social do mundo e do estado frágil e ameaçado do planeta Terra podem dar pouco lugar à esperança. A esperança não pode dispensar os dados objetivos da realidade, mas se alimenta de razões que vão além da conjuntura social e política. A convicção de que o próprio progresso da história e o desenvolvimento natural do Capitalismo acabarão conduzindo a sociedade ao Socialismo científico não tem sido verificada. Ao menos desta forma direta e quase positivista. Existem também escolas humanistas que apostam na bondade fundamental do ser humano e de sua capacidade de conduzir a história para o bem. A fronteira entre uma opção lúcida de esperança e uma confiança ingênua ou até alienada é muito tênue. De qualquer forma, Dom Hélder Câmara tem razão, sempre podemos descobrir razões para esperar e agir em função da esperança, criança brincalhona que acorda a casa e mostra o sol que nasce.
Guimarães Rosa dizia que "esperar é reconhecer-se incompletos". Filósofos como Robert Solomon, com sua proposta de "Espiritualidade para Céticos" (1), propõem uma espécie de ética que, sem precisar de nenhuma religião, se constrói como caminho espiritual, grávido de esperança. Trata-se de uma reflexão apaixonada pela vida que se concretiza na relação com a natureza, no gosto da música e no diálogo consigo mesmo e com os outros, além da intensificação da solidariedade com todos os seres humanos e com o universo.
Em uma sociedade pluralista, mesmo quem recebe de sua fé religiosa raízes de esperar é chamado a justificar sua esperança, não mais em linguagem mítica e acessível apenas à comunidade dos iniciados, mas de forma que possa ser acolhida por qualquer pessoa humana. Já no final do primeiro século de nossa era, um documento cristão dizia às comunidades uma palavra que pode ser traduzida como: "Estejam sempre prontos/as a dar, a quem lhes pedir, as razões da esperança que vivem" (1 Pd 3, 15). Este compromisso supõe que se dêem as razões da esperança na linguagem e cultura de quem pede este testemunho. Na primeira metade do século XX, Theillard de Chardin procurou traduzir sua fé de que o futuro do universo é a divinização do ser humano e de todos os seres vivos em termos científicos. Hoje, a organização dos movimentos populares e indígenas em todo o continente podem ser mediações desta esperança maior. O fortalecimento da sociedade civil internacional em fóruns por um novo mundo possível testemunha esta esperança exigente. Quem melhor precisou o coração desta esperança parece ter sido Dom Pedro Casaldáliga ao escrever um poema, cujos termos, se olhamos bem, quase parece contraditórios, mas são indicadores desta sábia razão de esperar: "Saber esperar, sabendo, ao mesmo tempo, forçar as horas daquela urgência que não permite esperar".
Nota:
(1) ROBERT SOLOMON, Espiritualidade para Céticos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2006.


*Monge beneditino, teólogo e escritor.

10 de dezembro de 2007

Casas Mortas, Casas Vivas

Sua casa é viva ou morta? A pergunta soa estranha, com certeza.
E você logo responderá que casa é algo inanimado.
A casa é feita de pedras, tijolos, madeira, portanto, não tem vida.
Entretanto, casas existem que são mortas.
Você as adentra e sente em todos os cômodos a inexistência de vida.
Sim, dentro delas habitam pessoas, famílias inteiras.
Mas são aquelas casas em que quase tudo é proibido.
Tudo tem que estar tão arrumado, ajeitado, sempre, que não se pode sentar no sofá porque se está arriscando sujar o revestimento novo e caro.
Casas em que o quarto das crianças é impecável.
Todos os bichinhos de pelúcia, por ordem de cor e tamanho, repousam nas prateleiras.
Essas casas são frias. Pequenas ou imensas, carecem do calor da descontração, da luz da liberdade e da iluminada possibilidade de dentro delas se respirar, cantar, viver. Por isso mesmo parecem mortas.
As casas vivas já demonstram, desde o jardim, que nelas existe vibração e alegria.
No gramado, a bola quieta fala da existência de muitos folguedos. A bicicleta, meio deitada, perto da garagem, diz que pernas infantis até há pouco a movimentaram com vigor.
Em todos os cômodos se reflete a vida. No sofá, um ursinho de pelúcia denuncia a presença de um pequenino irrequieto que carrega a sua preciosidade por todos os cantos.
Na saleta, livros, cadernos e lápis dizem dos estudos que se repetem durante horas.
O dicionário aberto, um marcador de páginas assinalando uma mensagem preciosa falam de pesquisa e leitura atenciosa.
A cozinha exala a mensagem de que ali, a qualquer momento, pode chegar alguém e se servir de um copo d’água, um café, um pedaço de pão.
Os quartos traduzem a presença dos moradores.
Cores alegres nas cortinas, janelas abertas para que o sol entre em abundância.
Os travesseiros um pouco desajeitados deixam notar que as crianças os jogam, vez ou outra, umas contra as outras, em alegres brincadeiras. Enfim, as casas vivas são aquelas em que as pessoas podem viver com liberdade. O que não quer dizer com desordem.
As casas vivas são aquelas nas quais os seus moradores já descobriram que elas foram feitas para morar, mas sobretudo para se viver.
Se estabelecemos, em nosso lar, rígidas regras de comportamento para que tudo esteja sempre impecável, como se pessoas ali não vivessem, estamos demonstrando que o mais importante são as coisas, não as pessoas.
Manter o asseio, a ordem é correto. Escravizar-se a detalhes, temer por estragos significa exagerado apego a coisas que, em última análise, somente existem em função das pessoas.
Transforme sua casa, pequena, de madeira, uma mansão, num lugar agradável de se retornar, de se viver, de se conviver com a família, os amigos, os amores. Coloque sinais de vida em todos os aposentos.
Disponha flores nas janelas para que quem passe, possa dizer:
Esta é uma casa viva. É um lar.

BOA SEMANA!

9 de dezembro de 2007

A moda Deus

Leonardo Boff*

Hoje o tema de Deus está em alta. Alguns em nome da ciência pretendem negar sua existência como o biólogo Richard Dawkins com seu livro Deus, um delirio (São Paulo 2007). Outros como o Diretor do Projeto Genoma, Francis Collins com o sugestivo título A linguagem de Deus (São Paulo 2007) apresentam as boas razões da fé em sua existência. E há outros no mercado como os de C.Hitchens e S.Harris.
No meu modo de ver, todas estes questionamentos laboram num equívoco epistemológico de base que é o de quererem plantar Deus e a religião no âmbito da razão.
O lugar natural da religião não está na razão, mas na emoção profunda, no sentimento oceânico, naquela esfera onde emergem os valores e as utopias. Bem dizia Blaise Pascal, no começo da modernidade:"é o coração que sente Deus, não a razão"(Pensées frag. 277). Crer em Deus não é pensar Deus mas sentir Deus a partir da totalidade do ser.
Rubem Alves em seu Enigma da Religião (1975) diz com acerto:"A intenção da religião não é explicar o mundo. Ela nasce, justamente, do protesto contra este mundo descrito e explicado pela ciência. A religião, ao contrário, é a voz de um consciência que não pode encontrar descanso no mundo tal qual ele é, e que tem como seu projeto transcendê-lo".
O que transcende este mundo em direção a um maior e melhor é a utopia, a fantasia e o desejo. Estas realidades que foram postas de lado pelo saber científico voltaram a ganhar crédito e foram resgatadas pelo pensamento mais radical inclusive de cunho marxista como em Ernst Bloch e Lucien Goldman. O que subjaz a este processo é a consciência de que pertence também ao real o potencial, o virtual, aquilo que ainda não é mas pode ser. Por isso, a utopia não se opõem à realidade. É expressão de sua dimensão potencial latente. A religião e a fé em Deus vivem desse ideal e desta utopia. Por isso, onde há religião há sempre esperança, projeção de futuro, promessa de salvação e de vida eterna. Elas são inalcançáveis pela simples razão técnico-científica que é uma razão encurtada porque se limita aos dados sempre limitados. Quando se restringe apenas a essa modalidade, se transforma numa razão míope como se nota em Dawkins. Se o real inclui o potencial, então com mais razão o ser humano, cheio de ilimitadas potencialidades. Ele, na verdade, é um ser utópico. Nunca está pronto, mas sempre em gênese, construindo sua existência a partir de seus ideais, utopias e sonhos. Em nome deles mostrou o melhor de si mesmo.
É deste transfundo que podemos recolocar o problema de Deus de forma sensata. A palavra-chave é abertura. O ser humano mostra três aberturas fundamentais: ao mundo transformando-o, ao outro se comunicando, ao Todo, captando seu caráter infinito, quer dizer, sem limites.
Sua condition humaine o faz sentir-se portador de um desejo infinito e de utopias últimas. Seu drama reside no fato de que não encontra no mundo real nenhum objeto que lhe seja adequado. Quer o infinito e só encontra finitos. Surge então uma angústia que nenhum psicanalista pode curar. É daqui que emerge o tema Deus. Deus é o nome, entre tantos, que damos para o obscuro objeto de nosso desejo, aquele sempre maior que está para além de qualquer horizonte.
Este caminho pode, quem sabe, nos levar à experiência do cor inquietum de Santo Agostinho:"meu coração inquieto não descansará enquanto não repousar em ti"
A razão que acolhe Deus se faz inteligência que intui para além dos dados e se transforma em sabedoria que impregna a vida de sentido e de sabor.


* Teólogo e professor emérito de ética da UERJ

7 de dezembro de 2007

Os dois sentidos da menoridade

Maria Clara Lucchetti Bingemer*

Nunca pensaria em sair desta maneira do anonimato que sempre foi sua morada. Jamais sequer sonhou que pudesse ser notícia de jornal. Exilada do mundo da lei, da ordem, dos direitos, ela seguia vida afora, empurrada pela desgraça e pelo anonimato. A pobreza, o abandono, a dificuldade eram seu pão de cada dia. A boca faminta não conseguia alimentar o corpo de menina começando a virar moça de forma abrupta e tremenda.
A fome, a pobreza, a errância a fizeram ir parar no mundo dos furtos. Estendeu a mão e pegou. Depois saiu correndo. Magrinha e ágil ia mais rápido. Até que um dia foi pega, autuada e presa. Além de ser surpreendida em furto, estava sem carteira de identidade. Era apenas uma menina sem nome, sem sobrenome, sem direitos. Ela, que pensava não haver mais sofrimento do que aquele que já enfrentava diariamente, descobriu que tudo ainda podia ser e ficar muito pior.
Em Abaetetuba, lugar perdido no mapa do Pará, foi trancafiada em uma cela com mais de 20 homens. Ali ficou por mais de um mês, segundo depoimento dos próprios detentos. Uma denúncia ao Conselho Tutelar trouxe seu caso à luz. O Conselho acionou o Ministério Público e o Juizado da Infância e da Adolescência. Sua triste história saiu do anonimato e da escuridão dos porões da carceragem masculina para ganhar a mídia e horrorizar o país.
Em Abaetetuba, como em muitas outras cidades brasileiras, não há carceragem feminina. Não havia, portanto, lugar onde colocar aquela menina presa em flagrante e que ainda por cima andava sem documentos. A solução foi jogá-la no presídio masculino. Isto, segundo a polícia civil, é o procedimento "normal". Assim como ela, outras passaram e ainda passarão por esta situação. Durante mais de um mês, serviu de pasto à libido desenfreada dos presos, que só não se serviam de seu corpo às quintas feiras, quando recebiam a visita das esposas.
Ao contrário do que acontece com outras crianças, para ela a sexta feira não anunciava o fim de semana de lazer e repouso. Mas sim o início de mais uma semana de dor, humilhação, violência e agressão. Contrariando a ética das prisões, segundo a qual estuprador não sobrevive nos cárceres, todos se uniram contra ela. Examinada, apresentou escoriações em várias partes do corpo e evidências de abuso sexual.
Em ridícula tentativa de mascarar a gravidade do ocorrido, o delegado geral da Polícia Civil do Pará, Raimundo Benassully, declarou ser a menor débil mental, por não ter declarado imediatamente sua menoridade. Felizmente, a governadora do estado retrucou que não há justificativa para o que aconteceu. E o presidente da OAB chamou o caso de "hediondo e intolerável".
Embora pobre, sem documentos e culpada de furto, ela é uma cidadã. Maior ou menor de idade, tem direitos e a lei existe para protegê-la. Sendo menor, ainda mais. O Estado tem obrigação de zelar pela integridade física e mental de suas crianças e jovens. Submeter uma menina que tem entre 15 e 17 anos a tamanho constrangimento é repugnante sob todos os pontos de vista.
Segundo o dicionário, "menor" é a pessoa que ainda não atingiu a maioridade, ou seja, a idade de 21 anos, quando pode ser plenamente responsável por seus atos. Mas há outra definição de "menor": hierarquicamente inferior, subordinado, subalterno. Ela se enquadra em todas as categorias: pela pouca idade, pela inferioridade e a subordinação que merecem sua condição e seu sexo: é pobre e, além de tudo, é mulher.
O sistema penitenciário inadequado e iníquo completou o quadro. Jogou-a na mesma cela que 20 presos homens. Vivendo em condições subumanas, estes violaram repetida e cruelmente sua fragilidade. Para sempre ela levará as marcas dessa dupla menoridade cronológica e antropológica. Que pelo menos seu sacrifício sirva para que o Brasil preste mais atenção ao que está fazendo com seu futuro ao tratar assim suas crianças e seus jovens


* teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio

Os dois sentidos da menoridade

Maria Clara Lucchetti Bingemer*

Nunca pensaria em sair desta maneira do anonimato que sempre foi sua morada. Jamais sequer sonhou que pudesse ser notícia de jornal. Exilada do mundo da lei, da ordem, dos direitos, ela seguia vida afora, empurrada pela desgraça e pelo anonimato. A pobreza, o abandono, a dificuldade eram seu pão de cada dia. A boca faminta não conseguia alimentar o corpo de menina começando a virar moça de forma abrupta e tremenda.
A fome, a pobreza, a errância a fizeram ir parar no mundo dos furtos. Estendeu a mão e pegou. Depois saiu correndo. Magrinha e ágil ia mais rápido. Até que um dia foi pega, autuada e presa. Além de ser surpreendida em furto, estava sem carteira de identidade. Era apenas uma menina sem nome, sem sobrenome, sem direitos. Ela, que pensava não haver mais sofrimento do que aquele que já enfrentava diariamente, descobriu que tudo ainda podia ser e ficar muito pior.
Em Abaetetuba, lugar perdido no mapa do Pará, foi trancafiada em uma cela com mais de 20 homens. Ali ficou por mais de um mês, segundo depoimento dos próprios detentos. Uma denúncia ao Conselho Tutelar trouxe seu caso à luz. O Conselho acionou o Ministério Público e o Juizado da Infância e da Adolescência. Sua triste história saiu do anonimato e da escuridão dos porões da carceragem masculina para ganhar a mídia e horrorizar o país.
Em Abaetetuba, como em muitas outras cidades brasileiras, não há carceragem feminina. Não havia, portanto, lugar onde colocar aquela menina presa em flagrante e que ainda por cima andava sem documentos. A solução foi jogá-la no presídio masculino. Isto, segundo a polícia civil, é o procedimento "normal". Assim como ela, outras passaram e ainda passarão por esta situação. Durante mais de um mês, serviu de pasto à libido desenfreada dos presos, que só não se serviam de seu corpo às quintas feiras, quando recebiam a visita das esposas.
Ao contrário do que acontece com outras crianças, para ela a sexta feira não anunciava o fim de semana de lazer e repouso. Mas sim o início de mais uma semana de dor, humilhação, violência e agressão. Contrariando a ética das prisões, segundo a qual estuprador não sobrevive nos cárceres, todos se uniram contra ela. Examinada, apresentou escoriações em várias partes do corpo e evidências de abuso sexual.
Em ridícula tentativa de mascarar a gravidade do ocorrido, o delegado geral da Polícia Civil do Pará, Raimundo Benassully, declarou ser a menor débil mental, por não ter declarado imediatamente sua menoridade. Felizmente, a governadora do estado retrucou que não há justificativa para o que aconteceu. E o presidente da OAB chamou o caso de "hediondo e intolerável".
Embora pobre, sem documentos e culpada de furto, ela é uma cidadã. Maior ou menor de idade, tem direitos e a lei existe para protegê-la. Sendo menor, ainda mais. O Estado tem obrigação de zelar pela integridade física e mental de suas crianças e jovens. Submeter uma menina que tem entre 15 e 17 anos a tamanho constrangimento é repugnante sob todos os pontos de vista.
Segundo o dicionário, "menor" é a pessoa que ainda não atingiu a maioridade, ou seja, a idade de 21 anos, quando pode ser plenamente responsável por seus atos. Mas há outra definição de "menor": hierarquicamente inferior, subordinado, subalterno. Ela se enquadra em todas as categorias: pela pouca idade, pela inferioridade e a subordinação que merecem sua condição e seu sexo: é pobre e, além de tudo, é mulher.
O sistema penitenciário inadequado e iníquo completou o quadro. Jogou-a na mesma cela que 20 presos homens. Vivendo em condições subumanas, estes violaram repetida e cruelmente sua fragilidade. Para sempre ela levará as marcas dessa dupla menoridade cronológica e antropológica. Que pelo menos seu sacrifício sirva para que o Brasil preste mais atenção ao que está fazendo com seu futuro ao tratar assim suas crianças e seus jovens


* teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio

4 de dezembro de 2007

pequena poesia

Como dizia o poeta

Quem já passou por essa vida e não viveu

Pode ser mais, mas sabe menos do que eu

Porque a vida só se dá pra quem se deu

Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu

Ah, quem nunca curtiu uma paixão nunca vai ter nada, não

Não há mal pior do que a descrença

Mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão

Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair

Pra que somar se a gente pode dividir

Eu francamente já não quero nem saber

De quem não vai porque tem medo de sofrer

Ai de quem não rasga o coração, esse não vai ter perdão

Quem nunca curtiu uma paixão, nunca vai ter nada, não

Vinícius de Moraes

1 de dezembro de 2007

A compaixão e a felicidade humana

Jung Mo Sung*

Na nossa vida sempre encontramos ou cruzamos com pessoas que estão sofrendo por algum motivo. Nestes momentos todos nós somos, de um modo ou outro, tocados pelo sofrimento alheio. Isto se chama compaixão.
Para entendermos isto melhor, quero narrar uma conversa que eu tive com uma pessoa alguns anos atrás. Estávamos saindo de um banco, bem no centro velho de São Paulo, quando vimos na rua pessoas pobres pedindo esmola. Ela me disse: "eu não gosto de vir aqui para centro por causa destas cenas que me deprimem. O centro está carregado de energias negativas e toda vez que eu venho aqui saio carregado desta negatividade e mesmo quando volto para minha casa eu sinto um certo peso, um certo mal estar".

Eu não quero discutir aqui se a expressão "energias negativas" é a melhor para expressar o ambiente como aquele, mas o que eu posso dizer com certeza é que esta pessoa foi tocada pelo sofrimento daquelas pessoas pobres, algumas com crianças pequenas. O fato de ela sentir esta "energia negativa" até mesmo quando estava no conforto e segurança da sua casa (que devia ser muito boa) mostra que ela costumava ser tocada com certa profundidade e não sabia bem como lidar com isto. Mesmo as pessoas mais insensíveis são tocadas pelos sofrimentos de outras pessoas. Uma comprovação disso é que elas reagem de alguma forma a este tipo de contato, mesmo que seja apenas para virar a cabeça. Este virar a cabeça para não ver o rosto de uma pessoa que sofre mostra que foi tocada. Ninguém é completamente insensível ao sofrimento de outras pessoas.

Hoje diversos experimentos científicos estão mostrando que esta é uma característica da espécie humana. Nós somos de uma espécie que é capaz de se colocar no lugar do outro para compreender a intenção da outra pessoa e compreender o que quer dizer ou comunicar; assim como também somos capazes de nos colocar no lugar da pessoa que está nos sorrindo para entendermos - algumas vezes de forma meio equivocada - o sentido daquele sorriso para nós. Isto funciona também diante de uma pessoa que sofre. Eu me coloco no lugar desta pessoa para poder compreender o sentimento de dor que se expressa no rosto dela ou em algum outro gesto. Ao me colocar no lugar do outro, para compreendê-lo, eu sinto o sofrimento com a pessoa que sofre.

A diferença entre as pessoas se dá na reação a esta experiência de compaixão. A dor e o sofrimento da outra pessoa me lembra os meus medos, inseguranças e sofrimentos que eu não quero me lembrar. Com isso, eu posso me fechar para a dor do outro para reprimir a minha dor e esquecer dos meus medos e inseguranças; ou então me permitir sentir a compaixão e assim tomar contato com as minhas dores, os meus sofrimentos e medos. É preciso muita força espiritual e também coragem para enfrentar as minhas dores mais fundas. Permanecer na compaixão não revela fraqueza ou de "pieguice" de uma pessoa, pelo contrário, é sinal da sua força emocional e espiritual.

Reprimir o sentimento inevitável da compaixão é reprimir uma parte do "eu" que está nas profundezas do meu ser. Em outras palavras, quem nega o sentimento de compaixão não pode se conhecer e, por isso, nem consegue encontrar uma "solução" para os seus problemas que foram escondidos, empurrados e trancados no mais fundo de si. Quem não é capaz de permanecer no sentimento de compaixão, não consegue viver uma vida feliz porque tenta negar a sua própria "natureza humana".

É por isso que pessoas como Dalai Lama dizem que a felicidade depende da compaixão, e que para desenvolver o sentimento de compaixão precisamos cultivar qualidades como "amor, paciência, tolerância, capacidade de perdoar, humildade e outras" e também "o hábito de uma disciplina interior".

Quando sentimos a compaixão, desejamos que os sofrimentos das outras pessoas cessem, não só porque as amamos ou acreditamos que elas têm direito a uma vida mais digna e humana, mas também para que os nossos sofrimentos resultantes da compaixão sejam aliviados. Neste processo sentimo-nos compelidos a fazer algo para mudar a situação, assim como também incluímos no nosso horizonte de futuro desejado a superação das situações que causam estes sofrimentos. Abertura ao sofrimento alheio que nos permite tomar contato com os nossos sofrimentos e medos, a esperança de um futuro onde estes problemas foram solucionados e ações concretas que nos dão convicção firme de que estamos, dentro das possibilidades, fazendo a coisa certa para caminharmos em direção a este futuro desejado são elementos fundamentais de uma vida feliz.

Compaixão e amor encarnado em ações concretas - que buscam superar situações de opressão, dominação, marginalização, exploração ou exclusão que geram sofrimentos de tanta gente - são elementos fundamentais tanto para uma vida pessoal quanto para uma sociedade mais humana. Não se pode ser feliz sendo insensível a tanto sofrimento e dor.

É claro que não devemos cair na tentação e pressão de sermos perfeitamente compassivos e capazes de ações perfeitas e plenas para "salvar" o mundo. Só na medida em que aceitamos a nossa dificuldade é que poderemos viver e fazer o que podemos de fato.

Compaixão, responsabilidade e solidariedade são valores fundamentais para salvarmos o mundo e as nossas vidas do cinismo, da indiferença e da desumanização.

Mesmo que a nossa vida e o mundo não se transformem na intensidade e na velocidade dos nossos desejos, sabemos que nossas ações transformam ou modificam para melhor, não somente a vida de outras pessoas, mas também a nós mesmos.

Elie Wiesel nos oferece uma pérola do pensamento talmúdico sobre isto: "A caridade salva da morte. [...] O que é a caridade? Os vivos devem se preocupar com a tristeza ou doença do próximo. Quem não se preocupa não é realmente sensível; quem não é sensível não está realmente vivo. E este é o significado do apelo do shammash: a caridade nos livra de morrer em vida".

[Autor de, entre outros, "Um caminho espiritual para felicidade"].


* Professor de pós-grad. em Ciências da Religião da Univ. Metodista de S. Paulo e autor de Sementes de esperança: a fé em um mundo em crise

29 de novembro de 2007

Mulheres: Sem medo de denunciar*

*Por Iolanda Toshie Ide

Brutalmente assassinadas pelo ditador Rafael Leônidas Trujillo, da República Dominicana, as irmãs Mirabal Minerva, Maria Tereza e Pátria Mirabal são justamente lembradas pra marcar a campanha 16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres. Essa campanha inicia-se exatamente na data do assassinato delas: 25 de novembro (1960).
Às vésperas do início da edição anual desta campanha, a divulgação da informação de que uma jovem atirada à prisão para ser torturada por estupros por parte de presos na mesma cela causa indignação e merece um público e veemente repúdio.
Quando nos perguntam sobre os avanços conquistados pelas mulheres desde a segunda metade do século XX, nunca fizemos um balanço otimista. O aumento significativo do ingresso de mulheres nos cursos superiores e a participação no mundo do trabalho formal faz parecer que se avançou muito. No entanto, não engendrou salários iguais aos dos homens mesmo quando a escolaridade da mulher é maior, sem falar no peso da dupla jornada. Entretanto, como ocorreu em Abaetetuba (e não é só lá) é revoltante ver o estado lançar mulheres nas celas junto a vários homens sabendo que serão estupradas.
No início do horário de verão, um homem feriu a esposa por ela não ter atrasado o relógio. Um rapaz ameaçou invadir a escola onde estuda uma jovem que ele desejava que fosse sua namorada, ameaçando-a. Um outro rapaz, não quis aceitar o rompimento com a namorada. Foi até o município onde ela estudava, abordou-a na entrada da faculdade matando-a. Um homem chegou em casa, quebrou móveis e louças, empurrou a esposa e suas duas filhas (de menos de 10 anos de idade) para fora de casa e se trancou para dormir: as três ficaram na rua durante toda a noite.
Quantas mulheres, ao longo da história foram impedidas de votar e de estudar. Mas isto não é coisa do passado. No dia 6 de dezembro de 1989, um estudante irrompeu na Escola politécnica de Montreal (Canadá) e atirou nas mulheres. Não aceitava que as jovens adentrassem nos cursos de engenharia dizendo elas roubavam as vagas dos homens. Atirou furiosamente assassinando 14 mulheres. Daí surgiu a Campanha do Laço Branco pela qual homens se engajam mobilizando-se pelo fim da violência contra a mulher.
- a cada minuto, 4 mulheres são espancadas;- em cada 10 casos registrados, 7 têm como agressor o marido, namorado, ex-companheiro, pai e parentes;- a cada 9 segundos, uma mulher é ofendida na sua conduta sexual;
A campanha pelo fim da violência contra as mulheres que de 25 de novembro a 10 de dezembro ocorre simultaneamente em mais de 130 países, necessita, pois, de muita garra. A Secretaria Especial de Políticas para Mulheres disponibilizou o telefone gratuito 180 para orientar as mulheres, funcionando 24 horas, inclusive nos sábados e domingos.
O patriarcalismo ainda está vivo: houve juiz que ousasse pronunciar-se contra a Lei Maria da Penha (Lei nº11.340) considerando-a inconstitucional. Estamos nos empenhando na direção contrária, divulgando a lei, incentivando as mulheres para que denunciem seus agressores, sem medo. Quem deve ter medo é o agressor. É preciso que a Lei nº 11.340 saia do papel. Afinal, uma vida sem violência é nosso direito.

28 de novembro de 2007

A DOR QUE DÓI MAIS

Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói.
Torcer o tornozelo dói. Um tapa, um soco, um pontapé, dóem.
Dói bater a cabeça na quina da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim.
Mas o que mais dói é saudade.
Saudade de um irmão que mora longe.
Saudade de uma cachoeira da infância.
Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais.
Saudade do pai que já morreu.
Saudade de um amigo imaginário que nunca existiu.
Saudade de uma cidade.
Saudade da gente mesmo, quando se tinha mais audácia e menos cabelos brancos. Dóem essas saudades todas. Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama.
Saudade da pele, do cheiro, dos beijos. Saudade da presença, e até da ausência consentida.
Você podia ficar na sala e ele no quarto, sem se verem, mas sabiam-se lá. Você podia ir para o aeroporto e ele para o dentista, mas sabiam-se onde.
Você podia ficar o dia sem vê-lo, ele o dia sem vê-la, mas sabiam-se amanhã.
Mas quando o amor de um acaba, ao outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter.Saudade é não saber. Não saber mais se ele continua se gripando no inverno.
Não saber mais se ela continua clareando o cabelo.
Não saber se ele ainda usa a camisa que você deu.
Não saber se ela foi na consulta com o dermatologista como prometeu.
Não saber se ele tem comido frango de padaria, se ela tem assistido as aulas de inglês, se ele aprendeu a entrar na Internet, se ela aprendeu a estacionar entre dois carros, se ele continua fumando Carlton, se ela continua preferindo Pepsi, se ele continua sorrindo, se ela continua dançando, se ele continua pescando, se ela continua lhe amando.Saudade é não saber.
Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche.Saudade é não querer saber.
Não querer saber se ele está com outra, se ela está feliz, se ele está mais magro, se ela está mais bela.
Saudade é nunca mais querer saber de quem se ama, e ainda assim, doer.

Martha Medeiros

Quem Sabe um Dia

Quem Sabe um Dia
Quem sabe um dia
Quem sabe um seremos
Quem sabe um viveremos
Quem sabe um morreremos!
Quem é queQuem é macho
Quem é fêmeaQuem é humano, apenas!
Sabe amar
Sabe de mim e de si
Sabe de nósSabe ser um!
Um dia
Um mês
Um ano
Um(a) vida!
Sentir primeiro, pensar depois
Perdoar primeiro, julgar depois
Amar primeiro, educar depois
Esquecer primeiro, aprender depois
Libertar primeiro, ensinar depois
Alimentar primeiro, cantar depois
Possuir primeiro, contemplar depois
Agir primeiro, julgar depois
Navegar primeiro, aportar depois
Viver primeiro, morrer depois

Mário Quintana

27 de novembro de 2007

A espiritualidade no conflito

Antônio Mesquita Galvão*

As pessoas, em geral, têm dificuldade de compreender o sentido da palavra "espiritualidade". E é justamente por causa desse equívoco que não conseguem desenvolver adequadamente um cristianismo eficaz, de acordo com seu estado de vida. Muitos a confundem com "espiritismo" ou "espiritualismo" e apontam para algum modo de vida espiritual, sem saber conceituar nem tampouco ava-liar como se desenvolve esse tipo de vivência. Por ser a espiritualidade uma forma muito rica de relação com Deus, ela aponta para um estilo de vida. De vida cristã.
O grande desafio da espiritualidade cristã é compatibilizar uma vida voltada para os apelos do Espírito na ambigüidade da vida material a que todos estão sujeitos. Não é possível a ninguém, alienar-se de sua vida material, social, pro-fissional, familiar, política, etc. É justamente nessas circunstâncias de nossa existência que devemos nos encontrar com Deus, sem fugir do mundo, mas relacionando-nos com o Infinito conforme nosso estado de vida. Reside aí o de-safio: viver uma vida cristã, espiritualizada e voltada para o alto, sem furtar-se à vida material e à dimensão sócio-fraterna inerente a esse tipo de vida.
É fundamental que se insista na necessidade que os cristãos têm, cada vez mais, de descobrirem eles próprios os caminhos de sua espiritualidade, de a-cordo com a forma de vida abraçada por cada um, sem que um queira viver em sua vida o tipo de espiritualidade do outro, ou simplesmente se omitindo. Deus quer que eu me envolva com ele, sem, no entanto, fechar os olhos à injustiça que sofre o irmão, o vizinho, o companheiro de caminhada. Essa opressão é uma tônica gritante fora do âmbito das grandes capitais do Sul-Sudeste. Em tudo ocorrem conflitos e desacertos. Na psicologia, vemos conflito, segundo as teorias behavioristas, como um "estado provocado pela coexistência de dois es-tímulos que disparam reações mutuamente excludentes". Simplificando, há quem defina, igualmente como "profunda falta de entendimento entre duas ou mais partes". A vida humana, e a existência dos cristãos não está imune, ocor-re no meio dos conflitos.
No meio das comunidades, especialmente no interior do país, ocorre a grilagem e o choque com os posseiros, contrastando com o coronelismo, a extração irre-gular de madeira e minérios, a falta de demarcação de terras indígenas, amea-ças ao meio-ambiente, doenças e endemias tropicais, subemprego, violência (e não-raro mortes) contra sindicalistas, líderes comunitários e ministros da Igre-ja. Isto sem falar nos "reflorestamentos" de árvores que só produzem celulose, plantações de maconha, etc. A isto se soma a falta de saneamento básico, um sistema educacional deficiente e famílias que se desestruturam por problemas sociais, econômicos e de migração compulsória. Há, por causa desses conflitos, uma perda de fé e de referenciais humanos.
Tudo deve ter início, a partir da iluminação da fé, pela Palavra de Deus, numa formação bíblica e doutrinária adequada, assim como a descoberta de uma ní-tida consciência crítica, não jungida a outros modelos de vida cristã, mas ade-quados à vida concreta de cada pessoa, conforme sua missão no meio do mun-do. Sendo a espiritualidade a forma como nos relacionamos com Deus, é impor-tante que deixemos de lado certo tipo de cristianismo desvinculado com a vida e o mundo, demasiadamente angelista, sem o compromisso com as transfor-mações que o evangelho de Jesus não cansa de nos exortar.
Toda a religião vivida de modo alienado torna-se alienante, para quem a pratica e para tantos quantos interajam com pessoas que assim atuam. Além disto, a vivência de uma espiritualidade incoerente é capaz de, pelo negativo do teste-munho, desviar muitas pessoas do caminho reto, da amizade com Deus, da Igreja e do serviço aos irmãos. Os profetas davam alento ao povo sofredor por causa da coragem de seu testemunho e de suas denúncias.
Para quem conhece o Brasil fica a constatação da existência de um conflito, entre o ser-cristão de muitos e a figura paulina do "espírito do mundo". O con-flito se instala, muitas vezes, dentro das Igrejas, com motivação político-ideológica, social e por causa da busca da busca de poder, intentada por de-terminados grupos. Para quem, como eu, reside no Sul do país, onde se vive sob o foco de uma religião de corte germânico, burocrática, sacramentalista, demasiadamente hierárquica, que forma uma "Igreja sentada", estática, pouco missionária e, geralmente acomodada, muitas facetas do conflito passam des-percebidas. No Norte e Nordeste do Brasil viver a fé é estar no meio do conflito, pois os obstáculos, como a natureza hostil, as pressões políticas, o descaso ofi-cial e as ameaças dos poderes sociais criam nas pessoas, especialmente po-dres, humildes e sem voz, faz emergir a necessidade de um profetismo militan-te. A convivência com os negros e os índios, cada um segregados à sua manei-ra, a sobrevivência sob o tacão da opressão, seja ela representada pelo patrão, pelo senhor dos engenhos ou do latifúndio, impõe a cada um, certas necessi-dades de viver a fé, de relacionar-se com Deus, organizando-se, fomentando um espírito crítico, sem apelar para a violência e sem a tentação de quebrar os paradigmas da paz e do perdão. A própria Justiça, que em tese deveria ser ce-ga, dispensa a cada grupo um quinhão proporcional a sua representatividade social. Querendo devolver olho-por-olho as injustiças sofridas, muitos abando-nam a fé, por não saberem desenvolver uma "espiritualidade no conflito". Em alguns lugares do Brasil, os crentes vivem uma espiritualidade cômoda, sem riscos; em outros, têm que desenvolvê-la no meio do conflito.
Só uma espiritualidade discernida e orientada pela Palavra é capaz de nortear os rumos de quem insiste em ser cristão e viver sua fé no meio do conflito que, por exemplo, nas regiões mais ínvias, é permanente.

*Doutor em Teologia Moral


26 de novembro de 2007

Lula No País das Maravilhas II

Ética e Reforma Política

Frei Betto*

A "ética" neoliberal se reduz às virtudes privadas dos indivíduos. Ignora a visão de institucionalidade ética. Reforça, assim, a atitude paralisante do moralismo, que a reduz à ilusória perfeição individual. Ora, se a sociedade é estruturada, a ética é imprescindível para se configurar o mundo histórico. Portanto, exige uma teoria política normativa das instituições que regem a sociedade.
Não basta falar em ética na política. A crítica às instituições geradoras de injustiças e negadoras de direitos exige ética da política. Abrir espaços para a criação de novos direitos. As instituições devem garantir a justiça distributiva - a partilha dos bens a que todos têm direito -, e a justiça participativa, a presença de todos (democracia) no poder que decide os rumos da sociedade.
O grande desafio ético hoje é como criar instituições capazes de assegurar direitos universais. Isso supõe uma ruptura com a atual visão pós-moderna, neoliberal, de fragmentação do mundo e exacerbação egolátrica, individualista.
Ainda que o ser humano tenha defeito de fabricação e prazo de validade, o que o Gênesis chama de "pecado original", há que se instaurar uma institucionalidade política capaz de assegurar direitos e impedir ameaças à liberdade e à natureza. Isso implica suscitar uma nova cultura inibidora dessas ameaças, assim como ocorre hoje em relação à escravidão, embora ainda praticada.
De onde tirar valores éticos universalmente aceitos? Como levar as pessoas a se perguntarem por critérios e valores? Hans Küng sugere que uma base ética mínima deve ser buscada nas grandes tradições religiosas. Seria o modo de passarmos de éticas regionais a uma ética planetária. Mas como aplicá-la ao terreno político? Mudar primeiro a sociedade ou as pessoas? O ovo ou a galinha?
Inútil dar um passo atrás e fixar-se na utopia do controle do Estado como precondição para transformar a sociedade. É preciso, antes, transformar a sociedade através de conquistas dos movimentos sociais, e de gestos e símbolos que acentuem as raízes antipopulares do modelo neoliberal. Combinar as contradições de práticas cotidianas (empobrecimento progressivo da classe média, desemprego, disseminação das drogas, degradação do meio ambiente, preconceitos e discriminações) com grandes estratégias políticas.
É concessão à lógica autoritária admitir que o Estado seja o único lugar onde reside o poder. Este se alarga pela sociedade civil, os movimentos populares, as ONGs, a esfera da arte e da cultura, que incutem novos modos de pensar, de sentir e de agir, e modificam valores e representações ideológicas, inclusive religiosas.
"Não queremos conquistar o mundo, mas torná-lo novo", proclamam os zapatistas. Hoje, a luta não é apenas de uma classe contra a outra, mas de toda a sociedade contra um modelo perverso que faz da acumulação privada da riqueza a única razão de viver. A luta é da humanização contra a desumanização, da solidariedade contra a alienação, da vida contra a morte.
A crise da esquerda não resulta apenas da queda do Muro de Berlim. É também teórica e prática. Teórica, de quem enfrenta o desafio de construir um socialismo sem stalinismo, dogmatismo, sacralização de líderes e de estruturas políticas. E prática, de quem sabe que não há saída sem retomar o trabalho de base, reinventar a estrutura sindical, reativar o movimento estudantil, incluir em sua pauta as questões indígenas, étnicas, sexuais e ecológicas.
Neste mundo desesperançado, apenas a imaginação e a criatividade são capazes de livrar a juventude da inércia, a classe média do desalento, os excluídos do sofrido conformismo. Isso requer uma ideologia que resgate a ética humanista do socialismo de inspiração cristã e abandone toda interpretação escolástica da realidade. Sobretudo toda atitude que, em nome do combate à velha ordem, faz a esquerda agir mimeticamente ao incensar vaidades, apegar-se a funções de poder, ceder à corrupção, reforçar a antropofagia de grupos e tendências que se satisfazem em morder uns aos outros.
O pólo de referência de todos que pretendem alcançar "um outro mundo possível", em torno do qual precisam se unir, é somente um: os direitos dos pobres.


[Autor, em parceria com Paulo Freire e Ricardo Kotscho, de "Essa escola chamada vida" (Ática), entre outros livros].

Dois poemas

***
Outros ventos trouxeram nossas cicatrizes
Um suor me recobre, pesa nestes ombrosa flor de encontro dúbio. Assim perditanto em buscá-la, tanto em desfazer.
As mãos sobre as coxas, o sexo já confessado.
Tão poderosa e viva e assim tão puraa luminosidade dos azuis.
E aspirei contigo o perfume casto das cerejas,também desfeito. O matiz inseguro de tuas nuvens.
Fluorescência do âmbar:o segredo revelado, não te espantes.
E é o mesmo teu silêncio, amparando as estátuas.As que houvera na morte e o sonho de suas noites.



Os frutos
O tempo colhia os frutos sem alardena terra baixa, maduros de sementes.
Eu corria as ladeiras com meus olhosfreqüentes do passado, e as flores frias.
Dos muros de palavras retirávamosum punhado de hera, o cheiro seco.
Que invadia as manhãs pelas janelase nossos corações cheios de névoa.
Ele colhia os frutos. Nós, sem pressa,que o tempo madurou de outros silêncios.
Eu não me erguia ao alto da colinasobre um caixão de pedra, com medo.
De nosso território com seus prédiosenormes e homens baixos. Eles jogavam.


[Pablo Simpson]

22 de novembro de 2007

O lobby de católicos na Conferência Nacional de Saúde

Luiz Alberto Gómez de Souza*

Uma pressão de setores católicos, da CNBB à Pastoral da Criança, na 13ª Conferência Nacional de Saúde, encerrada em Brasília dia 18 de novembro, levou à rejeição de uma moção sobre a interrupção voluntária da gravidez. Isso faz lembrar os esforços, por anos, de setores católicos, liderados pelo deputado e padre Arruda Câmara, do PDC, contra o divórcio, embora este tenha sido posteriormente aprovado. No passado, setores oficiais da Igreja tinham feito campanhas contra a secularização dos cemitérios, pela obrigação de capelães nas Forças Armadas e pelo ensino religioso obrigatório, em debate acirrado com Anísio Teixeira e outros defensores da Escola Nova. Era sempre a dificuldade de aceitar uma sociedade pluralista e democrática, onde os princípios de uma religião não podem prevalecer sobre o conjunto da sociedade, com outros credos ou sem credo algum. Trata-se de uma postura intolerante, que encontramos até hoje em setores fundamentalistas do Islã dos aiatolás, dos integristas católicos ou do presidente Bush. Como leigo católico, quero manifestar aqui minha desconformidade diante de setores de minha própria Igreja.
Há muita confusão pelo caminho. Confunde-se descriminalização do aborto com a legalização do mesmo. O Uruguai, com forte tradição laica, acaba de aprovar a descriminalização. Mas, já faz anos, a Itália, considerada país católico, apesar de pressão do Vaticano, legalizou o aborto, assim como mais recentemente Portugal.
O ministro da Saúde propôs um amplo debate sobre o tema, considerando-o com razão um problema de saúde pública, além de ter implicações éticas. Opor-se a esse debate livre é uma atitude autoritária ou hipócrita, como definiu um funcionário do Ministério da Saúde. Estamos numa democracia e toda discussão é necessária, para criar uma opinião pública e reforçar a cidadania participante. Transcrevo parte da moção rejeitada: "Assegurar os direitos sexuais e reprodutivos, respeitar a autonomia das mulheres sobre seu corpo e reconhecer o aborto como problema de saúde pública e discutir sua descriminalização por meio de projeto de lei" (Proposta 37 do eixo 1). Vejam que o tema para discutir e preparar um futuro projeto de lei refere-se à descriminalização do aborto e não à sua legalização. Fica, aliás, um problema candente: como punir uma mulher que passou pela penosa, dolorosa, traumática e arriscada decisão?
A manchete de um jornal de 19 de novembro assinala: Aborto: Igreja derrota proposta do governo. Questão que nos encaminha ao ponto seguinte. Podemos dizer simplesmente Igreja, povo de Deus na definição do Vaticano II, em sua dimensão eclesial, ou deveríamos falar de setores eclesiásticos dominantes e oficiais? Não esqueçamos que a posição de Jesus nunca foi de aplicar leis punitivas, porém, cheio de misericórdia e de compaixão, fazer perguntas instigantes diante da mulher adúltera que ia ser lapidada ou, escandalizando os próprios discípulos, dialogar com a samaritana, que não seguia a religião dos judeus e que tinha tido sete homens em sua vida. As leis ficavam por conta dos fariseus formalistas.
Esse tema torna-se mais complexo, pois, se o analisarmos dentro da própria Igreja Católica, em todas as suas dimensões. Tenho falado inúmeras vezes de temas congelados dentro da mesma, que precisam ser reabertos ao debate, como o celibato obrigatório, a ordenação de homens casados e de mulheres - para permitir o acesso à Eucaristia a um número maior de fiéis - e os temas da sexualidade e da reprodução. Um bispo francês, Jacques Gaillot, que enfrentou esses temas foi afastado de sua diocese de Évreux e criou a diocese virtual de Partênia. O teólogo espanhol Juan Masiá, pela mesma razão, foi levado ao "silêncio obsequioso", como Leonardo Boff e Ivone Gebara, há uns anos atrás. Mudou-se para o Japão e um livro seu está sendo publicado em português (Encontros de bioética, Loyola, 2007). O debate está em pauta. Mas sabemos que antes de mudanças, aqueles que as temem, se fecham num rictus rígido, que não esconde uma posição defensiva, historicamente perdedora, contra a emergência do novo. Já no século XIX, um grande teólogo, convertido ao catolicismo, o futuro Cardeal J. H. Newman, falou do desenvolvimento da doutrina, que não é um legado imutável, mas que se vai desdobrando e esclarecendo aos poucos. Aliás, o mesmo teólogo, logo depois do concílio Vaticano I, quando foi definida a infalibilidade papal, isolada de uma visão de Igreja mais ampla (que o Vaticano II completaria, no documento De Ecclesia), escreveu a um amigo angustiado: "Pio (IX) não é o último dos papas... Tenhamos paciência e confiança, um novo papa e um novo concílio polirão a obra" (carta de 3/4/1871). Poderíamos aplicar a mesma observação aos dois últimos pontificados.
Há, muitas vezes, nos meios conservadores, uma grande ignorância histórica. Faz alguns anos, pelo Syllabus, Pio IX condenou a democracia e a liberdade de imprensa. Esse documento não foi revogado, mas sepultado num esquecimento incômodo. Como antes a Inquisição, com a tortura e a queima de hereges e também a condenação de Galileu (uma retratação chegou com enorme atraso). A posição violentamente anti-moderna de Pio X, no começo do século passado, foi desbloqueada por seu sucessor, Bento XV. O Papa Pio XII faria o elogio da democracia em Mensagens de Natal, ao final da Segunda Guerra e o Vaticano II (1962-1965) seria um grande diálogo com a modernidade. Ver seu documento Gaudium et Spes. A consciência histórica caminha e com ela também a consciência eclesial. A aprovação da pena de morte e a noção de guerra justa vão desaparecendo na doutrina e nas alocuções dos papas. Ver a posição firme de João Paulo II diante da guerra do Iraque. Em contraste com a de Bush, que teve de recorrer à mentira e à fraude (e mesmo de setores da cúria romana que quiseram amenizar, em declarações ambíguas, a posição do próprio papa).
A mesma falta de sensibilidade histórica pode ser aplicada a temas como a interrupção voluntária da gravidez e à utilização, em pesquisas, de células-tronco embrionárias. Nesses casos, é preciso distinguir entre embrião e feto, como fases diferenciadas de um processo. Para Santo Agostinho no século IV e Tomás de Aquino no século XIII, a "animação", isto é, a implantação da alma no ser em gestação, se daria depois de algumas semanas desde a concepção. A partir de 1869, porém, a posição oficial da Igreja até agora, tem sido de defender com vigor o direito à vida "desde a concepção até a morte". Hoje em dia admite-se como critério para definir a morte, a morte cerebral, ainda que o coração esteja pulsando; sem o que não haveria transplantes de órgãos, aos quais a Igreja não se opõe. Se isso se dá ao final da cadeia, por que não revisar, com critérios análogos, o início da mesma? Quando começa a pessoa humana no processo da gestação? Na concepção inicial ou na criação do córtex cerebral? Questões em aberto em meios teológicos (Küng, Forcano, Louise Melançon, entre outros). Tema a ser debatido com lucidez e tranqüilidade numa Igreja que deveria rever-se permanentemente diante de tantos desafios sempre renovados. Há atualmente uma esquizofrenia entre prescrições oficiais sobre a reprodução humana (Casti Connubii, Pio XI, 1930; Humanae Vitae , Paulo VI, 1968) e a prática dos católicos (ex. caso dos preservativos). Na África, religiosos e religiosas distribuem camisinhas diante de uma terrível endemia de Aids.
Há que poder participar de um debate livre e corajoso. Na Igreja, muitos teólogos estão com dificuldade de entrar nele, por medo de perder sua licença de ensinar em estabelecimentos católicos (em termos técnicos, a partir de uma autoridade que inibe a reflexão livre e responsável, isto se chama, em latim, missio canonica). Tal decisão abateu-se sobre Hans Küng, que passou depois a ensinar em Tubinga teologia ecumênica.
Sempre que posso defendo o que o governo vem fazendo e aplaudo calorosamente a gestão do ministro Temporão. Mas tenho dificuldade de entender, em sentido contrário, a última nomeação governamental para o STF de Carlos Alberto Direito que, antes de tomar posse, pré-julgando, se declarou contra o aborto e o uso de células-tronco embrionárias. O presidente Bush, na mesma direção, vem nomeando ministros conservadores no Supremo americano, para voltar atrás na legislação a esse respeito. Aliás, nós que criamos a Ação Popular em 1962, com a inspiração do personalismo comunitário de Emmanuel Mounier e a opção de um socialismo democrático, encontramos então o atual ministro do STF, na política estudantil, numa posição oposta e conservadora. Parece que ele foi indicado por pressão de setores católicos tradicionais e de seu amigo Moreira Franco (pasmem, este foi da AP, assim como o candidato presidencial derrotado José Serra). Curiosos são os caminhos enviesados da história...
Volto ao começo. Sinto-me na obrigação de expressar, como católico, meu mal-estar pela maneira como o problema vem sendo abordado por setores oficiais de minha Igreja. Termino com a introdução que escrevi a meu livro de 2004, Do Vaticano II a um novo concílio? Olhar de um cristão leigo sobre a Igreja (Loyola, 2004): "Muitas décadas de atividades eclesiais como cristão leigo - meio século!- dão-me o direito de ser franco, honesto e direto, tentando varrer uma auto-censura tão comum nos meios eclesiásticos prudentes e sujeitos a sanções autoritárias. ... (essa atitude) quer ser a expressão de uma fidelidade impaciente ou de uma rebeldia filial, de quem se sente profundamente comprometido com a Igreja de Cristo que, dividida, frágil e tantas vezes incoerente, não deixa de ser ‘o Reino em germe’ (de Lubac), ‘a presença urgente, a presença importuna de Deus entre nós’ ".


*Sociólogo e ex-funcionário das Nações Unidas, é Diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência e Religião da Universidade Candido Mendes

16 de novembro de 2007

Retirada sustentável

Leonardo Boff*

Aos grandes meios de comunicação passou despercebido o impressionante discurso que o Presidente da Bolívia Evo Morales fez em outubro nas Nações Unidas. Falou menos como chefe de Estado e mais como um líder indígena, cuja visão da Terra e dos problemas ambientais está em claro confronto com o sistema mundial imperante. Denuncia sem rodeios: "a doença da Terra chama-se modelo de desenvolvimento capitalista" que permite a perversidade de "três famílias possuírem ingressos superiores ao PIB dos 48 paises mais pobres" e que faz com que "os Estados Unidos e a Europa consumam em média 8,4 vezes mais do que a média mundial". E fez uma ponderação sábia e de graves conseqüências: "perante esta situação, nós, os povos indígenas e os habitantes humildes e honestos deste Planeta, acreditamos que chegou a hora de fazer uma parada para reencontrarmos as nossas raízes com respeito à Mãe Terra, com a Pachamama como a chamamos nos Andes".
O alarme ecológico provocado pelo aquecimento global já iniciado deve produzir este primeiro efeito: fazermos uma parada para repensarmos o caminho até agora andado e criarmos novos padrões que nos permitam continuar juntos e vivos neste pequeno planeta. Temos, sim, que reencontrar nossas raízes terrenais. Urge que reconquistemos a consciência de que homem vem de humus (terra fecunda) e que Adão vem de Adamah (terra fértil). Somos Terra que sente, pensa, ama e venera. E agora, devido a um percurso civilizatório de alto risco, montado sobre a ilimitada exploração de todos os recursos da Terra e da vontade desenfreada de dominação sobre a natureza e sobre os outros, chegamos a um ponto crítico em que a sobrevivência humana corre perigo.
Assim como está não podemos continuar, caso contrário, iremos ao encontro de nossa própria destruição. Ainda recentemente observava Gorbachev: "precisamos de um novo paradigma civilizatório porque o atual chegou ao seu fim e exauriu suas possibilidades; temos que chegar a um consenso sobre novos valores ou em 30 ou 40 anos a Terra poderá existir sem nós". Conseguiremos um consenso mínimo quando sabemos que o capitalismo e a ecologia obedecem a duas lógicas contrárias? O primeiro se preocupa em como ganhar mais dominando a natureza e buscando o benefício econômico e a ecologia como produzir e viver em harmonia com a natureza e com todos os seres. Há aqui uma incompatibilidade de base. Ou o capitalismo se nega a si mesmo e assim cria espaço para o modo sustentável de viver ou então nos levará fatalmente ao destino dos dinossauros.
Mas somos confiantes como Evo Morales que em seu discurso enfatizou: "tenho absoluta confiança no ser humano, na sua capacidade de raciocinar,de aprender com seus erros, de recuperar as suas raízes e de mudar para a reconstrução de um mundo justo, diverso, inclusivo, equilibrado e harmônico com a natureza".
Consola-nos a sentença do poeta alemão Hölderin: "Quando grande é o perigo, grande é também a chance de salvação". Quando, dentro de anos, atingirmos o coração da crise e tudo estiver em jogo, então valerá o máxima da sabedoria ancestral e do cristianismo dos primórdios:"em caso de extrema necessidade, tudo se torna comum". Capitais, saberes e haveres serão participados por todos para poder salvar a todos. E nos salvaremos, com a Terra.


*Teólogo e professor emérito de ética da UERJ

13 de novembro de 2007

Refundar a República para todos

Marcelo Barros *

Ao recordar a proclamação da República, neste 15 de novembro, muitos brasileiros se dão conta de que o atual modelo político, de caráter representativo eleitoral, embora hoje continue vigente na maior parte dos países do mundo, está em crise e precisa urgentemente ser refundado, em bases novas e mais verdadeiramente democráticas. Intelectuais prestigiados em todo o mundo como Noam Chomsky, José Saramago, Zigmunt Bauman e mesmo um cômico de TV italiana como Beppe Grillo revelam o que qualquer cidadão pode constatar: o divórcio entre o poder e a política tem aumentado, como também a distância entre o Estado e a sociedade civil. Os partidos que, em outro tempo, representavam linhas de pensamento na sociedade, hoje, significam uma dança nômade de siglas indecifráveis que acabam encobrindo, quase todas elas, o mesmo tipo de política baseada nos privilégios de quem está no poder e no interesse econômico de grandes grupos nacionais e internacionais. Neste quadro, as decisões políticas são mais tomadas por corporações financeiras do que pelos políticos que o povo elege. Existem políticos honestos e consagrados ao povo, mas o modelo que acaba se impondo nos meios de comunicação é dos que fazem política como negócio particular. O Estado, sempre mais diminuído de suas funções, nem parece mais capaz de garantir a segurança mínima e os direitos convencionais para seus cidadãos. Na maioria dos casos, o papel dos cidadãos acaba restrito a votar em representantes que se comunicam com seus eleitores a cada quatro anos, quando precisam do seu voto.
O panorama das próximas eleições presidenciais nos Estados Unidos revela uma enorme abstenção dos eleitores, assim como a profunda desesperança da população com este modelo. Ao mesmo tempo que existe a consciência de que a modernidade "líquida" (expressão do sociólogo Zigmunt Bauman) produz estruturas políticas que também se liquidificam, não se tem ainda um modelo alternativo delineado para o qual possamos migrar com segurança.
Neste sábado 10 de novembro, em Santiago do Chile, encerrou-se o encontro dos governantes e representantes de todos os povos da América Latina sobre a integração do continente. Ao mesmo tempo que ocorreu o encontro de cúpula, as organizações indígenas e muitos grupos sociais fizeram um encontro para discutir os mesmos temas e propor soluções a partir das bases. Eram mais de duas mil pessoas de todos os países da América Latina e as conclusões estão à disposição de todos na internet em um documento chamado "Manifesto de Santiago". Ali todos concordam que, no continente, está ocorrendo um fenômeno novo. Existe o começo de um processo social e político novo a partir da organização dos povos indígenas e de sua articulação internacional. Pela primeira vez, no continente, o sonho que o libertador Simon Bolívar tinha de formar uma "grande pátria latino-americana" começa a se consolidar, a partir do respeito à autonomia política de cada Estado soberano, mas através de uma solidariedade que nos permita enfrentar o colonialismo que, durante 500 anos, manteve nossos povos como escravos e dependentes. Agora, estes povos empobrecidos não aceitam mais ser considerados cidadãos apenas pelo direito de votar. Querem ser sujeitos e protagonistas dos seus destinos e não somente ter uma democracia eleitoral e representativa, mas um verdadeiro processo democrático social e econômico que permita ao povo conquistar o direito de viver na sua terra, ter trabalho digno e garantir educação e dignidade de vida para seus filhos.
Na carta de introdução à Agenda Latino-americana de 2008, Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia, diz: "Temos de fazer da política um exercício básico de cidadania. A cidadania é o reconhecimento político dos direitos humanos. Porque somos humanidade, somos sociedade. O filósofo italiano Giorgio Agamben afirma: "A separação entre o humano e o político que vivemos na atualidade é a fase extrema da excisão entre os direitos do homem e os direitos do cidadão".
Assim como ainda há quem ensine na escola uma história protagonizada por heróis individuais (Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil, Dom Pedro I fez a independência e o Marechal Deodoro proclamou a República), sem se dar conta dos movimentos comunitários e sociais que possibilitaram estas mudanças, também hoje, há quem veja a integração latino-americana como politicagem de líderes populistas ou até ditatoriais.
Organismos internacionais da ONU têm reconhecido oficialmente a honestidade dos processos eleitorais democráticos nas recentes eleições, tanto na Venezuela, como na Bolívia e no Equador. Têm dado prêmios internacionais aos esforços para consolidar um atendimento de saúde que atinja a todo o povo pobre. Valorizam a vitória da alfabetização de adultos e educação popular que avança em vários paises do continente. Para consolidar isso, vários países votaram por reformar a sua Constituição. Este processo une o Congresso Nacional, organizações indígenas e entidades da sociedade civil, em um processo de diálogo nacional novo. Um jornalista do Le Monde Diplomatique, escutou de uma velha índia em uma aldeia dos Andes: "Estou aprendendo a ler para discutir as leis e colaborar com a nova Constituição do país".
No Brasil, os movimentos sociais e camadas mais pobres da população começam a se mobilizar por uma maior participação das bases e por uma justiça social mais estrutural. Foi este anseio que se sentiu entre os quase seis mil participantes do 6º Encontro nacional do Movimento Fé e Política que, em Nova Iguaçu, RJ, reuniu neste final de semana, (10 e 11/11/2007), cristãos e militantes sociais, ligados a várias Igrejas cristãs, como também a grupos religiosos populares. Divididas em mais de vinte plenários temáticos, as pessoas puderam expressar suas convicções e esperanças. Uma conclusão comum foi a urgência de fortalecer a consciência de pertencermos todos a América Latina e participarmos juntos deste caminho de libertação e integração continental.
Isso pode parecer vago e utópico. Entretanto, é esta capacidade de utopia que permite a resistência e fortalece a confiança de que o povo é capaz de transformar a realidade. Oscar Wilde dizia: "Um mapa-mundi que não inclua a utopia não vale a pena nem olhar, pois deixa de fora o único país em que a humanidade está sempre desembarcando. E quando a humanidade lá desembarca, ela olha em volta e, ao ver um país melhor, iça as velas. O progresso é a realização das utopias".


* Monge beneditino

28 de dezembro de 2007

Jesus Nasceu!

Jesus nasceu!
Nosso coração se enche de alegria!
Chegou o Menino Deus!
Chegou a salvação!Jesus nasceu!Nos foi dado um filho, um menino!
Para acolher os fracos, para acolher os pequeninos.Jesus Nasceu!Nasceu frágil e inseguro!
Para nos dar forças e segurança no caminho.
Jesus nasceu!
Nasceu pobre e faminto!
Para enriquecer a muitos e saciar de pão os excluídos.
Jesus nasceu!Nasceu numa gruta fria,entre animais que lhe deram aconchego e calor.
Jesus nasceu!Nasceu entre Maria e José!
Veio colocar em prova nossa fé e encher nosso ser de esperanças.
Jesus nasceu!

Nasceu proclamando a Boa Novada paz e da solidariedade para todos de boa vontade.
Jesus nasceu!
Veio trazer a verdadeira vida!
Para que renascidos com Ele, possamos desejar a todos: Feliz Natal!

24 de dezembro de 2007

23 de dezembro de 2007

Quatro histórias de Natal

Frei Betto*

I
Em Belém, Caleb atende à porta. Ao ver quem bate, fecha-a de imediato, enquanto o visitante insiste aos murros, como se quisesse derrubar a parede.
A mulher, Cozbi, indaga quem é. "Meu irmão". "O José?", pergunta ela. "Sim, teve o descaramento de engravidar uma jovem de Nazaré sem nem terem se casado, como manda a nossa lei. Agora vem com a buxuda pedir abrigo em nossa casa. Como hei de acolher quem viola os preceitos ditados por Javé a Moisés? Eles que procurem outra freguesia".


II
Eleazar realizou, enfim, seu velho sonho: um pequeno sítio nas proximidades de Belém. No pasto, misturou vacas, cabras e cordeiros. Montou um cocho de madeira e armou, em torno, um toldo de bambu coberto com folhas de palmeira.
De madrugada, Efraim, pastor contratado pelo dono da terra, bate forte pelo lado de fora da janela. O patrão, sonolento, parece receber como pesadelo a notícia: "Invadiram suas terras, meu senhor. Tem um casal acampado lá na estrebaria. Escutei um choro miúdo. Parece que a mulher deu à luz um menino."
"Avise a guarda. Ao despontar do sol cuidaremos de tirá-los de lá", resmunga Eleazar interessado em retomar o sono.
Dia seguinte, o Diário de Belém dá em manchete: "Família sem-teto e sem-terra invade propriedade rural na periferia da cidade". No corpo da notícia: "Moça de Nazaré, engravidada por carpinteiro, teve parto em pleno pasto. A criança é do sexo masculino".


III
Guiadas pela estrela de Davi, as três rainhas magas, Ada, Míriam e Sela, chegam à manjedoura. Após louvarem a Javé, aquecem um caldo de galinha para Maria, alimentam José com pães ázimos recheados com grão-de-bico, lavam as fraldas do bebê, varrem o estábulo. Ao buscar água na fonte, comentam entre si: "O menino em nada se parece com o pai..."


IV
A notícia do nascimento do menino não tarda a chegar ao palácio de Herodes, em Jerusalém. Ele fica alarmado; afinal, é o rei dos judeus, malgrado o sangue árabe que corre em suas veias. Sabe, porém, que tem os dias contados, carcomido pelo cancro. A proximidade da morte o aterroriza tanto quanto os agouros que lhe ameaçam o trono.
Pede a Corinto, comandante da guarda, convocar reunião em palácio dos chefes dos sacerdotes e dos doutores da lei, os escribas.
O convite trazido por Corinto deixa Anás excitado. No íntimo, considera-se o verdadeiro rei da Palestina. Comparece em companhia de duas dezenas de membros do sinédrio - o conselho supremo do poder judaico, integrado por 71 notáveis, e do qual ele, na condição de sumo sacerdote, é o presidente.
Herodes é introduzido no salão a bordo de uma liteira de marfim sustentada por quatro escravos. Anás mal consegue controlar sua curiosidade por conhecer o motivo de tão inesperada convocação. O rei quer saber dos sinedritas onde e quando deve nascer o Messias que tanto aguardam. Gamaliel cofia sua barba em leque e diz: "Nascerá em Belém, na Judéia, pois está dito pelo profeta Miquéias - E tu, Belém, de modo algum és a menor entre as cidades de Judá, pois de ti sairá para mim aquele que deve guiar Israel. Quando isso ocorrerá - escusa-se o doutor da lei -, não está ao alcance do nosso saber."
Herodes não admite que a sua soberania seja desafiada por rumores em torno de um menino-messias. Ordena que a guarda de operações especiais, comandada pelo espadaúdo Tirano, dirija-se a Belém e passe ao fio da espada todas as crianças do sexo masculino com menos de dois anos de idade.
Ao amanhecer, as tropas herodianas ocupam Belém. Os batedores vão de casa em casa. Ordenam que todos os meninos de colo, e aqueles que ainda não caminham com firmeza, sejam trazidos à rua por suas mães. As outras mulheres devem permanecer trancadas em casa, com portas e janelas fechadas, em companhia de homens e crianças.
Toda a gente de Belém pressente que, desta vez, Azrael, o anjo exterminador, voltou-se contra ela. As mães ficam separadas dos filhos que, nus, são deitados lado a lado ao longo das ruas. Os bebês choram um choro de abandono, insistente, como se um presságio os movesse a sugar com avidez o ar que, em breve, já não poderão respirar. De rostos virados para as paredes das casas e dos muros, e vigiadas por soldados, as mães riscam as pedras com as unhas e lavam o musgo com as lágrimas.
Após observar cada criança à procura de algum traço messiânico, Tirano dá o sinal para a degola. O carrasco agacha-se, puxa a cabeça da vítima para esticar o pescoço, ergue o cutelo e, num golpe, separa o crânio do corpo. Algumas mães, desesperadas, ousam voltar-se na direção dos filhos; são silenciadas pela lâmina do punhal que lhes traspassa o coração. Tirano passa ao fio de sua própria espada as mulheres que furam o cerco das sentinelas e se abraçam aos filhos como se quisessem fazê-los retornar ao útero.
Desde essa trágica manhã em Belém, os poderosos cruéis tornaram-se conhecidos como tiranos.


*[Autor da biografia de Jesus "Entre todos os homens" (Ática), entre outros livros].


21 de dezembro de 2007

Para que este Natal seja novo e feliz

Marcelo Barros*

É bom se entender sobre o que desejamos uns aos outros, quando expressamos nossos votos de Feliz Natal. As comunidades cristãs fazem memória do nascimento de Jesus para celebrar como acontecimento atual a presença divina no mundo. Neste contexto, o Natal é uma celebração que não apenas repete um aniversário e sim atualiza um mistério: na pessoa de Jesus de Nazaré, Deus assume, hoje, a humanidade e a diviniza. Para tantas outras pessoas que se dizem Feliz Natal sem referência explícita ao nascimento de Jesus e sem celebração religiosa, o desejo é que a alegria e a paz proclamada pelos céus se atualizem gratuitamente para todo universo.
Neste mundo em que convivem pessoas de tantas culturas diferentes e no qual o elemento religioso ainda é motivo de conflito e provoca guerras, a graça do Natal é valorizar o caminho que tantos grupos e organizações civis fazem para tornar este mundo um grande presépio, no qual a fragilidade do ser humano seja revestida pela força do amor divino. Esta revelação de que todos os seres humanos, cada qual em seu caminho próprio e do seu modo, têm esta vocação de conceber no intimo do seu ser a divindade dá um caráter sagrado a todas as culturas, chamadas a dialogar, às religiões que, em sua diversidade, podem se complementar e mesmo à vida cotidiana que pode perder a cor da monotonia pelo anúncio de que algo de novo está nascendo. A própria troca de presentes e de votos de feliz Natal revela uma sociedade, na qual os gestos de delicadeza e relação humana ainda encontram sentido.
Em países como Costa de Marfim, muçulmanos celebram o Natal com os cristãos, assim como, no final do Ramadam, os cristãos vão à mesquita para participar da festa com os irmãos do Islã. A sociedade multi-cultural não se constrói pela abolição das particularidades próprias de cada cultura e sim pela possibilidade destas valorizarem umas às outras e conviverem em paz.
Em cada Natal, cristãos e não cristãos podem ver em Maria grávida de Jesus, a figura de toda mulher que, em nossos dias, se abre com confiança ao mistério da vida e, mesmo em situações difíceis e contraditórias, percebe no silêncio e na escuta da história o sopro do Espírito. A parábola de José que recebe em sonhos o aviso de Deus sobre sua vocação de guardião do filho de Deus nos confirma: todos nós podemos interpretar o futuro a partir dos pequenos sinais de que a história pode mudar e dar espaço a uma vida nova.
Neste Natal, seja você quem for, o melhor presente que pode se dar a si mesmo e aos outros é colocar-se na pele dos pobres pastores de Belém que receberam a visita dos anjos anunciadores da paz e da salvação. Em meio às violências cotidianas do mundo, podemos pastorear a vida e construir a paz. Para isso, às vezes, precisamos estar dispostos a caminhar, mesmo quando a viagem é longa e cansativa até o presépio onde nos espera o mistério.
O conto simbólico dos astrólogos que a devoção popular chama de reis magos nos revela a missão dos intelectuais que assumem a condição humilde de quem procura, aprendem a interpretar o que, hoje, a natureza nos diz e se deixam guiar, enamorados, pela estrela guia.
Alguns grupos espiritualistas valorizam muito a figura dos anjos, novamente, em moda. O termo grego anjo significa mensageiro. Até Jesus Cristo, como enviado do Pai, recebe este nome. Nós todos somos anjos uns para os outros, quando cuidamos das feridas uns dos outros, como fez o anjo Rafael com Tobias e acolher em nossos joelhos tantos Cristos pregados nas cruzes que, a cada dia, o mundo inventa e recria. Natal é boa ocasião para agradecer a cada pessoa ao nosso lado que, durante todo este ano, foi um verdadeiro anjo da guarda e nos defendeu das mesquinharias do dia a dia.
Finalmente, na história que o evangelho conta do Natal, o que sempre me surpreende não é apenas o esplendor e a beleza do que foi anunciado. Crer que, no meio da noite escura, o céu pode se encher de luz e a tristeza dos pastores cansados pode dar lugar à alegria de participar do cântico dos anjos é sempre um desafio. Mas, o mais difícil mesmo é reconhecer na figura marginal da criança que jaz no presépio a luz do amor divino. Tudo o que os pastores encontram é uma família paupérrima de migrantes sem teto que acalentam seu filho recém-nascido em uma estrebaria.
No Mosteiro de Goiás, em cada celebração da noite do Natal, quando os jovens fazem um presépio vivo, eu me comovo ao ver a criança recém-nascida que eles trazem para fazer o papel do menino Jesus no presépio. Aquela criança pobre não é apenas um ator. É o sinal vivo da presença permanente de Deus nos mais frágeis e pequeninos. Mas, afinal, aquela criança que, no meio da noite, dorme tranqüila no presépio e nem sabe que é o centro de uma celebração de Natal, não é um pouco a imagem de todos nós, no presépio do mundo?
Neste Natal, o Espírito de amor salva a criança que dorme no mais íntimo de cada um/uma de nós e nos chama a peregrinar até este presépio secreto de nossa vida, no qual podemos, novamente, refazer as brincadeiras de criança, recitar poesias e nos maravilhar com as histórias de amor das quais nós mesmos somos protagonistas.
Os desafios do cotidiano continuam duros. É preciso crer nos que cantam a paz e não nos que querem destruir o que de novidade índios, lavradores e seus aliados estão realizando na Bolívia, Venezuela, Equador e em todo o nosso continente. Quem escuta mais profundamente a palavra do Natal adere ao apelo profético de Dom Luiz Cáppio para salvar o rio São Francisco e espera que, em meio às políticas neo-liberais que transformam o Brasil em um imenso canavial, para produzir Etanol, os pobres de hoje continuem escutando o cântico do céu e o grito da terra e se mobilizem para que, em meio à noite, uma vida nova possa surgir.
A vocês todos, feliz Natal.


*Monge beneditino, teólogo e escritor. Tem 30 livros publicados.

18 de dezembro de 2007

Sim a Dom Luiz Cappio, Não à Transposição do Rio S. Francisco

Marcos Arruda*

Pres. Lula da SilvaPor favor, Presidente. Dom Cappio não está só. O gesto amoroso que ele faz com a greve de fome - amor ao povo brasileiro e amor à Natureza e ao Velho Chico - não é um gesto isolado, mas sim povoado de presenças de milhões pelo Brasil afora e também pelo mundo! Uma pequena mostra será o Jejum Solidária que muitxs estaremos fazendo no Brasil e no exterior, em apoio à causa e como clamor pela vida do Velho Chico e de Dom Cappio! O gesto de Dom Cappio, e o nosso, é um gesto moral, pois simboliza com eloqüência a FOME a que está sendo levado o Rio S. Francisco e sua imensa Bacia. Mas é igualmente um gesto político, pois questiona uma opção que não tem NADA de técnica. Técnica, e solidamente científica, seria a opção pela revitalização, pois através dela estariam sendo beneficiados 34 milhões de pessoas da Bacia do Velho Chico. Sendo eficiente e ecologicamente sustentável, é tecnicamente e cientificamente a mais sábia e correta. É também um gesto de repúdio contra a militarização das obras de transposição, que atentam contra o direito sagrado do povo de indignar-se e protestar, e de expressar por diversas formas, pacíficas, seu repúdio ao projeto e sua determinação de defender seu meio de vida e a integridade do seu ecossistema. A opção pela transposição é tecnicamente equivocada. Ela NÃO vai resolver o problema da seca, nem as carências de água e de alimentos da população do Semi-Árido. Ela toma o Semi-Árido como o inimigo, quando os inimigos são outros: latifúndio, agronegócio, busca de lucro fácil e imediato através da exportação, ausência de qualquer real preocupação com uma solução estrutural e sustentável para a fome, a pobreza, a miséria, a falta de acesso à terra, aos meios de torná-la fértil, a uma assistência técnica eficaz, ao fim das violações dos direitos dos povos indígenas, à educação, à saúde, enfim, aos direitos de cidadania que garantam uma vida humana e digna. Presidente, enquanto o Brasil 'economiza' R$ 106 bilhões até outubro para pagar juros aos banqueiros, já excessivamente ricos, o Nordeste de onde você veio continua sofrendo de doenças e mortes evitáveis. Seu gesto corajoso de retirar os 41 blocos do campo de Tupi do 9o. leilão precisa ser repetido, cancelando o projeto faraônico, elitista e irresponsável de transposição. E optando pela revitalização, pelo milhão de cisternas, pelas 140 técnicas alternativas e ecologicamente sustentáveis, pelas 530 obras previstas no projeto da Agência Nacional das Águas. Pela REVITALIZAÇÃO DE TODA A BACIA DO RIO SÃO FRANCISCOPor um Projeto de Convivência com o Semi-áridoPelo ARQUIVAMENTO DO INSANO E FARAÔNICO PROJETO DE TRANSPOSIÇÃO DO VELHO CHICO!Pelo respeito à sua própria palavra, Presidente, dada há dois anos ao Bispo Dom Cappio, de que a transposição não seria levada adiante sem uma ampla discussão democrática com a população! Prof. Marcos ArrudaPACS - Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul


*Socioeconomista e educador do PACS - Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul, Rio de Janeiro, e sócio do Instituto Transnacional

Natal de Dom Cappio

Frei Betto*

Lá está o bispo, dom Luiz Flávio Cappio, no sertão da Bahia, decidido em sua greve de fome contra a transposição do Rio São Francisco.
O rio, que corta o coração do Brasil, leva o nome do santo padroeiro da ecologia, devido ao seu amor à natureza, com a qual mantinha relação de alteridade e empatia: Irmão Sol, Irmã Lua.
O que poucos notam é que o mentor de dom Cappio era, no século XIII, um crítico radical dos primórdios do capitalismo. O feudalismo ruía por sua inércia e os burgos, as futuras cidades, despontavam sob as luzes da redescoberta de Aristóteles e os novos empreendimentos mercantis.
Bernardone, pai de Francisco, rico proprietário de manufatura de tecidos, importava da França as tinturas para colorir seu produto. Sua admiração pela metrópole levou-o a batizar o filho em homenagem à França - Francesco.
A miséria, até então, campeava na Europa em decorrência de guerras e da peste. O mercantilismo gerou, pela primeira vez, relações de trabalho promotoras de exclusão social. Francisco solidarizou-se com as vítimas da nascente manufatura. Ao despir-se na praça de Assis, todos entenderam o gesto para além de simples ato de despojamento. As roupas produzidas pelo pai estavam conspurcadas pela tecnologia que condenava artesãos à perda de seu ofício e, portanto, à miséria.
Hoje, o franciscano dom Cappio se posiciona ao lado das vítimas da transposição das águas do São Francisco. O PT, historicamente, era contrário ao projeto. E também contra a CPMF. Uma vez governo, mudou, como, aliás, mudou em tantas outras coisas. Mudou para não efetivar as mudanças prometidas, como a agrária. Mudou para se desfigurar como partido dos pobres e da ética. Mudou para ficar mais parecido com seus adversários políticos.
Em Sobradinho (BA), na capela consagrada ao santo que dá nome ao rio, o bispo faz seu gesto solitário, embora alvo, no Brasil e no exterior, de muitos apoios solidários. Sua primeira greve de fome, por 11 dias, foi em 2005. Dom Cappio recusou alimentos até que o governo prometesse rediscutir o projeto e promover a revitalização do rio. Segundo o bispo, o Planalto não honrou o compromisso.
A obra de transposição está orçada em R$ 5 bilhões. Cornucópia na qual estão de olho as grandes empreiteiras e o agronegócio. Dom Cappio desconfia de que a transposição beneficiará, não os pobres da região, que vivem da pesca e do cultivo familiar, e sim o grande capital.
Quem já viu governo fazer obra de vulto para beneficiar pobre? Nem sequer o governo Lula investiu suficientemente no programa de construção de 1 milhão de cisternas de captação de água da chuva, que poria fim às agruras da seca no semi-árido. Apenas 25% das cisternas foram construídas, assim mesmo graças ao apoio da iniciativa privada. Cidades sem suficiente saneamento são beneficiadas por viadutos para o conforto de quem transita em carros...
Quem terá acesso à água transposta? A seca ou a cerca? Não faz sentido esse projeto numa região em que ainda predomina o latifúndio e cuja população, cerca de 12 milhões pessoas, não tem acesso à propriedade da terra. No projeto não são incluídas as 34 comunidades indígenas e os 153 quilombolas encontrados em sua área de alcance.
O próprio organismo que responde pelas bacias hidrográficas, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, está contra o projeto, que ignora as estruturas sociais arcaicas da região - o que significa, na prática, fortalecê-las.
O que dom Cappio reivindica é simples e democrático: que o governo debata o projeto com a sociedade, sobretudo com os ribeirinhos do São Francisco. A obra terá profundo impacto em toda a extensão territorial do país e, sobretudo, reflexos ambientais e sociais.
Dom Cappio tem fome de justiça, uma bem-aventurança, segundo Jesus no Sermão da Montanha. Seu Natal é o da manjedoura, lá onde a família de Maria e José, sem-teto e sem-terra, faz nascer a esperança de que a população da bacia do São Francisco não venha, em futuro próximo, ser conhecida também como sem-rio.

[Autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco), entre outros livros].

*Frei dominicano.

14 de dezembro de 2007

Transcendência-Imanência-Transparência

Leonardo Boff*

Não há tradição cultural que não se refira a um Princípio criador ou a uma Energia originária ou simplesmente a Deus. A grande questão é como expressar essa Realidade. Aqui, mais que os teólogos que falam sobre Deus, contam os que falam com Deus, como os místicos e os profetas, cujo testemunho não pode ser negado. Na história do pensamento se delineiam três maneiras de falar com referência a Deus.
A primeira fala de transcendência. Deus é tão outro que tudo o que dizemos dele é mais mentira que verdade. O melhor é calar ou apenas sorrir amavelmente como Buda.
A segunda fala de imanência. Deus é experimentado de forma tão intensa que ele se anuncia em cada coisa. Assim vem enraizado dentro do mundo. E é chamado por mil nomes.
A terceira fala de transparência. Busca um caminho intermédio. Deus não pode ser tão transcendente, pois se assim fosse, como saberíamos dele? Ele deve ter alguma relação com o mundo. Anunciar um Deus sem o mundo faz, fatalmente, nascer um mundo sem Deus. Também não pode ser tão misturado com as coisas que acaba sendo uma parte deste mundo. Se Deus existe como as coisas existem, então Deus não existe. Ele é o suporte do mundo não porção dele.
É aqui que tem sentido a transparência. Ela afirma que a transcendência se dá dentro da imanência sem perder-se nela, caso contrário não seria realmente transcendência. E a imanência carrega dentro de si a transcendência porque comparece sempre como uma realidade aberta a intermináveis referências. Quando isso ocorre a realidade deixa de ser transcendente ou imanente. Ela se faz transparente. Encerra dentro de si a imanência e a transcendência. Tomemos o exemplo da água. A água é água, jorrando da fonte (imanente). Mas é mais que água. Simboliza também a vida e o frescor (transcendente). Ao transformar-se em símbolo de vida e frescor, a água se torna transparente para estas realidades. E o faz por ela mesma e nela mesma.
Essa talvez seja a forma mais sensata de falar sobre Deus e a partir de Deus. Na forma do paradoxo. Por um lado devemos afirmar que todas as nossas palavras são inócuas. De Deus não podemos fazer nenhuma imagem. Por outro lado, não podemos dizer que Deus é o totalmente indeterminado, qualquer coisa vaga, um fundo sem fundo. A realidade de Deus (não sua imagem) é um concreto concretíssimo, o ser em plenitude, portanto uma realidade concreta, mas sempre para além de qualquer concreção. É representado pela água mas ele não é água. Identificar água e Deus é cair na idolatria.
Nesse paradoxo a transparência ganha relevância. Ela faz que o inatingível (transcendência) se torne atingível através e dentro de algo concreto (imanência), mas transfigurado-o em símbolo (transparência). É o que o cristianismo afirma de Jesus. Ele é um camponês/artesão mediterrâneo (imanente), mas que viveu de tal modo (transparente) que nos permitiu entrever Deus (transcendente). "Quem vê a mim, vê o Pai". Como? Na forma como se dirigia a Deus, chamando-o de Paizinho querido (Abba), o que supõe que se sentia seu filho. Depois, agindo de um jeito que sua existência era uma pró-existência, vida para os outros, especialmente, os últimos e desprezados. O que disse e fez, foi para nos induzir a ter a mesma atitude que ele teve. Assim descobriremos que somos também filhos e filhas, em comunhão com ele.
Ele se fez transparente para Deus, não rebaixando os que vieram antes dele, mas radicalizando seu dinamismo, tornando-se um ponto referencial. Deus, então, está no mundo, mas para além dele.

*Teólogo e professor emérito de ética da UERJ

13 de dezembro de 2007

Atualizar as razões de esperar

Marcelo Barros*

Nos Estados Unidos e nos países que têm a mesma referência cultural, o dia nacional de ação de graças, celebrado, a cada ano, na última quinta-feira de novembro, tem o sabor de final de ano e revisão de uma etapa percorrida. É uma festa, fruto do capitalismo, que considera a acumulação de bens como graça divina. As Igrejas cristãs, embora sejam sempre tentadas pela mesma heresia, sabem que a organização atual do mundo não vem de Deus e a desigualdade social e econômica vigentes o ofendem. O Evangelho é a boa notícia de que este mundo pode mudar e o projeto de paz e justiça, inspirado por Deus, pode se realizar, como elemento transformador da vida e de toda esperança humana.
Sem dúvida, é ingenuidade pensar que, por si mesmo, com o tempo, as coisas melhoram e, seja como for, o amanhã será melhor do que hoje. A esperança verdadeira não pode ser mera projeção no futuro. Já nos duros anos da ditadura, cantávamos com Vandré: "Esperar não é saber. Quem sabe faz a hora. Não espera acontecer...". Quem se demite de agir agora não tem direito de esperar nada do futuro. Esperar não é apenas aguardar. É engravidar o amanhã pela atuação responsável no aqui e agora. Também não se pode confundir a esperança com a projeção de nossos desejos utópicos. A esperança mais profunda pode incluir o desejo, mas tem uma raiz mais objetiva. Em um livro de meditação sobre a esperança cristã, escrito nos anos 60, o padre Comblin escrevia: "Esperar não é desejar. É obedecer (no sentido do antecipar profético) ao caminho que Deus nos aponta" (A maior esperança, Ed. Paulinas).
Há tradições, como a antiga religião greco-romana, que desenvolveram uma visão do tempo mais cíclica e menos histórica. Alguns grupos espiritualistas atuais têm uma visão determinista da vida, baseada nas leis de causa e efeito e na inexorabilidade do Carma. No Candomblé de tradição iorubá, Orumilá é o Orixá que abre às pessoas o Odu, ou caminho do destino. No sistema Ifá, são 16 odus que são consultados para saber qual o destino (odu) de cada pessoa. Entretanto, há certa liberdade de escolha. Uma vez, ao tratar deste assunto, uma mãe de santo afirmou: "Você pode fazer o que quiser, mas é bom saber com que material conta. Se me dá laranjas, posso fazer suco, doce, salada de fruta, mas não posso, por exemplo, com laranja salgar uma carne. E não adianta protestar porque laranja não serve como sal para uma carne. Não se trata de fatalismo ou sina e sim de descobrir como na vida de cada pessoa se desenvolve o projeto de amor divino dado a todos".
De um modo ou de outro, muitas religiões e caminhos espirituais, tanto antigas tradições orientais, como as culturas indígenas e negras, embora com termos diversos e através de seus mitos próprios, apostam em uma visão de esperança como a confiança lúcida e operante na realização progressiva dos desígnios divinos para o mundo. Há quem prefira chamar esta esperança de fé.
A própria Bíblia diz: "Pela fé, Abraão partiu, sem saber para onde ia" (Hb 11, 8 ss). Assim, para a fé judaica e cristã, a esperança significa viver, no aqui e agora, uma confiança na promessa divina que se concretiza em uma atitude de construir o futuro. A promessa divina é raiz de esperança porque ela se compromete com a mudança da história. A promessa só tem sentido quando muda o rumo dos acontecimentos e nos faz apostar no contrário de todos os prognósticos racionais. Na Bíblia, a promessa divina é assim: abre o útero das estéreis e reinverte a ordem vigente. Derruba os poderosos e eleva os pequenos. Assim, ela dá à esperança uma raiz própria: a confiança amorosa no futuro que se abre para nós. Podem acontecer coisas terríveis. Pode ser que não tenhamos respostas para as grandes questões da existência. Apesar disso, optamos por confiar que a vida tem sentido e é possível construir para a humanidade e para o planeta Terra um futuro mais feliz.
Fora do ambiente das tradições espirituais, a esperança ainda precisa de mais fortes razões para se justificar e se alimentar. Apenas uma análise lúcida da realidade social do mundo e do estado frágil e ameaçado do planeta Terra podem dar pouco lugar à esperança. A esperança não pode dispensar os dados objetivos da realidade, mas se alimenta de razões que vão além da conjuntura social e política. A convicção de que o próprio progresso da história e o desenvolvimento natural do Capitalismo acabarão conduzindo a sociedade ao Socialismo científico não tem sido verificada. Ao menos desta forma direta e quase positivista. Existem também escolas humanistas que apostam na bondade fundamental do ser humano e de sua capacidade de conduzir a história para o bem. A fronteira entre uma opção lúcida de esperança e uma confiança ingênua ou até alienada é muito tênue. De qualquer forma, Dom Hélder Câmara tem razão, sempre podemos descobrir razões para esperar e agir em função da esperança, criança brincalhona que acorda a casa e mostra o sol que nasce.
Guimarães Rosa dizia que "esperar é reconhecer-se incompletos". Filósofos como Robert Solomon, com sua proposta de "Espiritualidade para Céticos" (1), propõem uma espécie de ética que, sem precisar de nenhuma religião, se constrói como caminho espiritual, grávido de esperança. Trata-se de uma reflexão apaixonada pela vida que se concretiza na relação com a natureza, no gosto da música e no diálogo consigo mesmo e com os outros, além da intensificação da solidariedade com todos os seres humanos e com o universo.
Em uma sociedade pluralista, mesmo quem recebe de sua fé religiosa raízes de esperar é chamado a justificar sua esperança, não mais em linguagem mítica e acessível apenas à comunidade dos iniciados, mas de forma que possa ser acolhida por qualquer pessoa humana. Já no final do primeiro século de nossa era, um documento cristão dizia às comunidades uma palavra que pode ser traduzida como: "Estejam sempre prontos/as a dar, a quem lhes pedir, as razões da esperança que vivem" (1 Pd 3, 15). Este compromisso supõe que se dêem as razões da esperança na linguagem e cultura de quem pede este testemunho. Na primeira metade do século XX, Theillard de Chardin procurou traduzir sua fé de que o futuro do universo é a divinização do ser humano e de todos os seres vivos em termos científicos. Hoje, a organização dos movimentos populares e indígenas em todo o continente podem ser mediações desta esperança maior. O fortalecimento da sociedade civil internacional em fóruns por um novo mundo possível testemunha esta esperança exigente. Quem melhor precisou o coração desta esperança parece ter sido Dom Pedro Casaldáliga ao escrever um poema, cujos termos, se olhamos bem, quase parece contraditórios, mas são indicadores desta sábia razão de esperar: "Saber esperar, sabendo, ao mesmo tempo, forçar as horas daquela urgência que não permite esperar".
Nota:
(1) ROBERT SOLOMON, Espiritualidade para Céticos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2006.


*Monge beneditino, teólogo e escritor.

10 de dezembro de 2007

Casas Mortas, Casas Vivas

Sua casa é viva ou morta? A pergunta soa estranha, com certeza.
E você logo responderá que casa é algo inanimado.
A casa é feita de pedras, tijolos, madeira, portanto, não tem vida.
Entretanto, casas existem que são mortas.
Você as adentra e sente em todos os cômodos a inexistência de vida.
Sim, dentro delas habitam pessoas, famílias inteiras.
Mas são aquelas casas em que quase tudo é proibido.
Tudo tem que estar tão arrumado, ajeitado, sempre, que não se pode sentar no sofá porque se está arriscando sujar o revestimento novo e caro.
Casas em que o quarto das crianças é impecável.
Todos os bichinhos de pelúcia, por ordem de cor e tamanho, repousam nas prateleiras.
Essas casas são frias. Pequenas ou imensas, carecem do calor da descontração, da luz da liberdade e da iluminada possibilidade de dentro delas se respirar, cantar, viver. Por isso mesmo parecem mortas.
As casas vivas já demonstram, desde o jardim, que nelas existe vibração e alegria.
No gramado, a bola quieta fala da existência de muitos folguedos. A bicicleta, meio deitada, perto da garagem, diz que pernas infantis até há pouco a movimentaram com vigor.
Em todos os cômodos se reflete a vida. No sofá, um ursinho de pelúcia denuncia a presença de um pequenino irrequieto que carrega a sua preciosidade por todos os cantos.
Na saleta, livros, cadernos e lápis dizem dos estudos que se repetem durante horas.
O dicionário aberto, um marcador de páginas assinalando uma mensagem preciosa falam de pesquisa e leitura atenciosa.
A cozinha exala a mensagem de que ali, a qualquer momento, pode chegar alguém e se servir de um copo d’água, um café, um pedaço de pão.
Os quartos traduzem a presença dos moradores.
Cores alegres nas cortinas, janelas abertas para que o sol entre em abundância.
Os travesseiros um pouco desajeitados deixam notar que as crianças os jogam, vez ou outra, umas contra as outras, em alegres brincadeiras. Enfim, as casas vivas são aquelas em que as pessoas podem viver com liberdade. O que não quer dizer com desordem.
As casas vivas são aquelas nas quais os seus moradores já descobriram que elas foram feitas para morar, mas sobretudo para se viver.
Se estabelecemos, em nosso lar, rígidas regras de comportamento para que tudo esteja sempre impecável, como se pessoas ali não vivessem, estamos demonstrando que o mais importante são as coisas, não as pessoas.
Manter o asseio, a ordem é correto. Escravizar-se a detalhes, temer por estragos significa exagerado apego a coisas que, em última análise, somente existem em função das pessoas.
Transforme sua casa, pequena, de madeira, uma mansão, num lugar agradável de se retornar, de se viver, de se conviver com a família, os amigos, os amores. Coloque sinais de vida em todos os aposentos.
Disponha flores nas janelas para que quem passe, possa dizer:
Esta é uma casa viva. É um lar.

BOA SEMANA!

9 de dezembro de 2007

A moda Deus

Leonardo Boff*

Hoje o tema de Deus está em alta. Alguns em nome da ciência pretendem negar sua existência como o biólogo Richard Dawkins com seu livro Deus, um delirio (São Paulo 2007). Outros como o Diretor do Projeto Genoma, Francis Collins com o sugestivo título A linguagem de Deus (São Paulo 2007) apresentam as boas razões da fé em sua existência. E há outros no mercado como os de C.Hitchens e S.Harris.
No meu modo de ver, todas estes questionamentos laboram num equívoco epistemológico de base que é o de quererem plantar Deus e a religião no âmbito da razão.
O lugar natural da religião não está na razão, mas na emoção profunda, no sentimento oceânico, naquela esfera onde emergem os valores e as utopias. Bem dizia Blaise Pascal, no começo da modernidade:"é o coração que sente Deus, não a razão"(Pensées frag. 277). Crer em Deus não é pensar Deus mas sentir Deus a partir da totalidade do ser.
Rubem Alves em seu Enigma da Religião (1975) diz com acerto:"A intenção da religião não é explicar o mundo. Ela nasce, justamente, do protesto contra este mundo descrito e explicado pela ciência. A religião, ao contrário, é a voz de um consciência que não pode encontrar descanso no mundo tal qual ele é, e que tem como seu projeto transcendê-lo".
O que transcende este mundo em direção a um maior e melhor é a utopia, a fantasia e o desejo. Estas realidades que foram postas de lado pelo saber científico voltaram a ganhar crédito e foram resgatadas pelo pensamento mais radical inclusive de cunho marxista como em Ernst Bloch e Lucien Goldman. O que subjaz a este processo é a consciência de que pertence também ao real o potencial, o virtual, aquilo que ainda não é mas pode ser. Por isso, a utopia não se opõem à realidade. É expressão de sua dimensão potencial latente. A religião e a fé em Deus vivem desse ideal e desta utopia. Por isso, onde há religião há sempre esperança, projeção de futuro, promessa de salvação e de vida eterna. Elas são inalcançáveis pela simples razão técnico-científica que é uma razão encurtada porque se limita aos dados sempre limitados. Quando se restringe apenas a essa modalidade, se transforma numa razão míope como se nota em Dawkins. Se o real inclui o potencial, então com mais razão o ser humano, cheio de ilimitadas potencialidades. Ele, na verdade, é um ser utópico. Nunca está pronto, mas sempre em gênese, construindo sua existência a partir de seus ideais, utopias e sonhos. Em nome deles mostrou o melhor de si mesmo.
É deste transfundo que podemos recolocar o problema de Deus de forma sensata. A palavra-chave é abertura. O ser humano mostra três aberturas fundamentais: ao mundo transformando-o, ao outro se comunicando, ao Todo, captando seu caráter infinito, quer dizer, sem limites.
Sua condition humaine o faz sentir-se portador de um desejo infinito e de utopias últimas. Seu drama reside no fato de que não encontra no mundo real nenhum objeto que lhe seja adequado. Quer o infinito e só encontra finitos. Surge então uma angústia que nenhum psicanalista pode curar. É daqui que emerge o tema Deus. Deus é o nome, entre tantos, que damos para o obscuro objeto de nosso desejo, aquele sempre maior que está para além de qualquer horizonte.
Este caminho pode, quem sabe, nos levar à experiência do cor inquietum de Santo Agostinho:"meu coração inquieto não descansará enquanto não repousar em ti"
A razão que acolhe Deus se faz inteligência que intui para além dos dados e se transforma em sabedoria que impregna a vida de sentido e de sabor.


* Teólogo e professor emérito de ética da UERJ

7 de dezembro de 2007

Os dois sentidos da menoridade

Maria Clara Lucchetti Bingemer*

Nunca pensaria em sair desta maneira do anonimato que sempre foi sua morada. Jamais sequer sonhou que pudesse ser notícia de jornal. Exilada do mundo da lei, da ordem, dos direitos, ela seguia vida afora, empurrada pela desgraça e pelo anonimato. A pobreza, o abandono, a dificuldade eram seu pão de cada dia. A boca faminta não conseguia alimentar o corpo de menina começando a virar moça de forma abrupta e tremenda.
A fome, a pobreza, a errância a fizeram ir parar no mundo dos furtos. Estendeu a mão e pegou. Depois saiu correndo. Magrinha e ágil ia mais rápido. Até que um dia foi pega, autuada e presa. Além de ser surpreendida em furto, estava sem carteira de identidade. Era apenas uma menina sem nome, sem sobrenome, sem direitos. Ela, que pensava não haver mais sofrimento do que aquele que já enfrentava diariamente, descobriu que tudo ainda podia ser e ficar muito pior.
Em Abaetetuba, lugar perdido no mapa do Pará, foi trancafiada em uma cela com mais de 20 homens. Ali ficou por mais de um mês, segundo depoimento dos próprios detentos. Uma denúncia ao Conselho Tutelar trouxe seu caso à luz. O Conselho acionou o Ministério Público e o Juizado da Infância e da Adolescência. Sua triste história saiu do anonimato e da escuridão dos porões da carceragem masculina para ganhar a mídia e horrorizar o país.
Em Abaetetuba, como em muitas outras cidades brasileiras, não há carceragem feminina. Não havia, portanto, lugar onde colocar aquela menina presa em flagrante e que ainda por cima andava sem documentos. A solução foi jogá-la no presídio masculino. Isto, segundo a polícia civil, é o procedimento "normal". Assim como ela, outras passaram e ainda passarão por esta situação. Durante mais de um mês, serviu de pasto à libido desenfreada dos presos, que só não se serviam de seu corpo às quintas feiras, quando recebiam a visita das esposas.
Ao contrário do que acontece com outras crianças, para ela a sexta feira não anunciava o fim de semana de lazer e repouso. Mas sim o início de mais uma semana de dor, humilhação, violência e agressão. Contrariando a ética das prisões, segundo a qual estuprador não sobrevive nos cárceres, todos se uniram contra ela. Examinada, apresentou escoriações em várias partes do corpo e evidências de abuso sexual.
Em ridícula tentativa de mascarar a gravidade do ocorrido, o delegado geral da Polícia Civil do Pará, Raimundo Benassully, declarou ser a menor débil mental, por não ter declarado imediatamente sua menoridade. Felizmente, a governadora do estado retrucou que não há justificativa para o que aconteceu. E o presidente da OAB chamou o caso de "hediondo e intolerável".
Embora pobre, sem documentos e culpada de furto, ela é uma cidadã. Maior ou menor de idade, tem direitos e a lei existe para protegê-la. Sendo menor, ainda mais. O Estado tem obrigação de zelar pela integridade física e mental de suas crianças e jovens. Submeter uma menina que tem entre 15 e 17 anos a tamanho constrangimento é repugnante sob todos os pontos de vista.
Segundo o dicionário, "menor" é a pessoa que ainda não atingiu a maioridade, ou seja, a idade de 21 anos, quando pode ser plenamente responsável por seus atos. Mas há outra definição de "menor": hierarquicamente inferior, subordinado, subalterno. Ela se enquadra em todas as categorias: pela pouca idade, pela inferioridade e a subordinação que merecem sua condição e seu sexo: é pobre e, além de tudo, é mulher.
O sistema penitenciário inadequado e iníquo completou o quadro. Jogou-a na mesma cela que 20 presos homens. Vivendo em condições subumanas, estes violaram repetida e cruelmente sua fragilidade. Para sempre ela levará as marcas dessa dupla menoridade cronológica e antropológica. Que pelo menos seu sacrifício sirva para que o Brasil preste mais atenção ao que está fazendo com seu futuro ao tratar assim suas crianças e seus jovens


* teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio

Os dois sentidos da menoridade

Maria Clara Lucchetti Bingemer*

Nunca pensaria em sair desta maneira do anonimato que sempre foi sua morada. Jamais sequer sonhou que pudesse ser notícia de jornal. Exilada do mundo da lei, da ordem, dos direitos, ela seguia vida afora, empurrada pela desgraça e pelo anonimato. A pobreza, o abandono, a dificuldade eram seu pão de cada dia. A boca faminta não conseguia alimentar o corpo de menina começando a virar moça de forma abrupta e tremenda.
A fome, a pobreza, a errância a fizeram ir parar no mundo dos furtos. Estendeu a mão e pegou. Depois saiu correndo. Magrinha e ágil ia mais rápido. Até que um dia foi pega, autuada e presa. Além de ser surpreendida em furto, estava sem carteira de identidade. Era apenas uma menina sem nome, sem sobrenome, sem direitos. Ela, que pensava não haver mais sofrimento do que aquele que já enfrentava diariamente, descobriu que tudo ainda podia ser e ficar muito pior.
Em Abaetetuba, lugar perdido no mapa do Pará, foi trancafiada em uma cela com mais de 20 homens. Ali ficou por mais de um mês, segundo depoimento dos próprios detentos. Uma denúncia ao Conselho Tutelar trouxe seu caso à luz. O Conselho acionou o Ministério Público e o Juizado da Infância e da Adolescência. Sua triste história saiu do anonimato e da escuridão dos porões da carceragem masculina para ganhar a mídia e horrorizar o país.
Em Abaetetuba, como em muitas outras cidades brasileiras, não há carceragem feminina. Não havia, portanto, lugar onde colocar aquela menina presa em flagrante e que ainda por cima andava sem documentos. A solução foi jogá-la no presídio masculino. Isto, segundo a polícia civil, é o procedimento "normal". Assim como ela, outras passaram e ainda passarão por esta situação. Durante mais de um mês, serviu de pasto à libido desenfreada dos presos, que só não se serviam de seu corpo às quintas feiras, quando recebiam a visita das esposas.
Ao contrário do que acontece com outras crianças, para ela a sexta feira não anunciava o fim de semana de lazer e repouso. Mas sim o início de mais uma semana de dor, humilhação, violência e agressão. Contrariando a ética das prisões, segundo a qual estuprador não sobrevive nos cárceres, todos se uniram contra ela. Examinada, apresentou escoriações em várias partes do corpo e evidências de abuso sexual.
Em ridícula tentativa de mascarar a gravidade do ocorrido, o delegado geral da Polícia Civil do Pará, Raimundo Benassully, declarou ser a menor débil mental, por não ter declarado imediatamente sua menoridade. Felizmente, a governadora do estado retrucou que não há justificativa para o que aconteceu. E o presidente da OAB chamou o caso de "hediondo e intolerável".
Embora pobre, sem documentos e culpada de furto, ela é uma cidadã. Maior ou menor de idade, tem direitos e a lei existe para protegê-la. Sendo menor, ainda mais. O Estado tem obrigação de zelar pela integridade física e mental de suas crianças e jovens. Submeter uma menina que tem entre 15 e 17 anos a tamanho constrangimento é repugnante sob todos os pontos de vista.
Segundo o dicionário, "menor" é a pessoa que ainda não atingiu a maioridade, ou seja, a idade de 21 anos, quando pode ser plenamente responsável por seus atos. Mas há outra definição de "menor": hierarquicamente inferior, subordinado, subalterno. Ela se enquadra em todas as categorias: pela pouca idade, pela inferioridade e a subordinação que merecem sua condição e seu sexo: é pobre e, além de tudo, é mulher.
O sistema penitenciário inadequado e iníquo completou o quadro. Jogou-a na mesma cela que 20 presos homens. Vivendo em condições subumanas, estes violaram repetida e cruelmente sua fragilidade. Para sempre ela levará as marcas dessa dupla menoridade cronológica e antropológica. Que pelo menos seu sacrifício sirva para que o Brasil preste mais atenção ao que está fazendo com seu futuro ao tratar assim suas crianças e seus jovens


* teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio

4 de dezembro de 2007

pequena poesia

Como dizia o poeta

Quem já passou por essa vida e não viveu

Pode ser mais, mas sabe menos do que eu

Porque a vida só se dá pra quem se deu

Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu

Ah, quem nunca curtiu uma paixão nunca vai ter nada, não

Não há mal pior do que a descrença

Mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão

Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair

Pra que somar se a gente pode dividir

Eu francamente já não quero nem saber

De quem não vai porque tem medo de sofrer

Ai de quem não rasga o coração, esse não vai ter perdão

Quem nunca curtiu uma paixão, nunca vai ter nada, não

Vinícius de Moraes

1 de dezembro de 2007

A compaixão e a felicidade humana

Jung Mo Sung*

Na nossa vida sempre encontramos ou cruzamos com pessoas que estão sofrendo por algum motivo. Nestes momentos todos nós somos, de um modo ou outro, tocados pelo sofrimento alheio. Isto se chama compaixão.
Para entendermos isto melhor, quero narrar uma conversa que eu tive com uma pessoa alguns anos atrás. Estávamos saindo de um banco, bem no centro velho de São Paulo, quando vimos na rua pessoas pobres pedindo esmola. Ela me disse: "eu não gosto de vir aqui para centro por causa destas cenas que me deprimem. O centro está carregado de energias negativas e toda vez que eu venho aqui saio carregado desta negatividade e mesmo quando volto para minha casa eu sinto um certo peso, um certo mal estar".

Eu não quero discutir aqui se a expressão "energias negativas" é a melhor para expressar o ambiente como aquele, mas o que eu posso dizer com certeza é que esta pessoa foi tocada pelo sofrimento daquelas pessoas pobres, algumas com crianças pequenas. O fato de ela sentir esta "energia negativa" até mesmo quando estava no conforto e segurança da sua casa (que devia ser muito boa) mostra que ela costumava ser tocada com certa profundidade e não sabia bem como lidar com isto. Mesmo as pessoas mais insensíveis são tocadas pelos sofrimentos de outras pessoas. Uma comprovação disso é que elas reagem de alguma forma a este tipo de contato, mesmo que seja apenas para virar a cabeça. Este virar a cabeça para não ver o rosto de uma pessoa que sofre mostra que foi tocada. Ninguém é completamente insensível ao sofrimento de outras pessoas.

Hoje diversos experimentos científicos estão mostrando que esta é uma característica da espécie humana. Nós somos de uma espécie que é capaz de se colocar no lugar do outro para compreender a intenção da outra pessoa e compreender o que quer dizer ou comunicar; assim como também somos capazes de nos colocar no lugar da pessoa que está nos sorrindo para entendermos - algumas vezes de forma meio equivocada - o sentido daquele sorriso para nós. Isto funciona também diante de uma pessoa que sofre. Eu me coloco no lugar desta pessoa para poder compreender o sentimento de dor que se expressa no rosto dela ou em algum outro gesto. Ao me colocar no lugar do outro, para compreendê-lo, eu sinto o sofrimento com a pessoa que sofre.

A diferença entre as pessoas se dá na reação a esta experiência de compaixão. A dor e o sofrimento da outra pessoa me lembra os meus medos, inseguranças e sofrimentos que eu não quero me lembrar. Com isso, eu posso me fechar para a dor do outro para reprimir a minha dor e esquecer dos meus medos e inseguranças; ou então me permitir sentir a compaixão e assim tomar contato com as minhas dores, os meus sofrimentos e medos. É preciso muita força espiritual e também coragem para enfrentar as minhas dores mais fundas. Permanecer na compaixão não revela fraqueza ou de "pieguice" de uma pessoa, pelo contrário, é sinal da sua força emocional e espiritual.

Reprimir o sentimento inevitável da compaixão é reprimir uma parte do "eu" que está nas profundezas do meu ser. Em outras palavras, quem nega o sentimento de compaixão não pode se conhecer e, por isso, nem consegue encontrar uma "solução" para os seus problemas que foram escondidos, empurrados e trancados no mais fundo de si. Quem não é capaz de permanecer no sentimento de compaixão, não consegue viver uma vida feliz porque tenta negar a sua própria "natureza humana".

É por isso que pessoas como Dalai Lama dizem que a felicidade depende da compaixão, e que para desenvolver o sentimento de compaixão precisamos cultivar qualidades como "amor, paciência, tolerância, capacidade de perdoar, humildade e outras" e também "o hábito de uma disciplina interior".

Quando sentimos a compaixão, desejamos que os sofrimentos das outras pessoas cessem, não só porque as amamos ou acreditamos que elas têm direito a uma vida mais digna e humana, mas também para que os nossos sofrimentos resultantes da compaixão sejam aliviados. Neste processo sentimo-nos compelidos a fazer algo para mudar a situação, assim como também incluímos no nosso horizonte de futuro desejado a superação das situações que causam estes sofrimentos. Abertura ao sofrimento alheio que nos permite tomar contato com os nossos sofrimentos e medos, a esperança de um futuro onde estes problemas foram solucionados e ações concretas que nos dão convicção firme de que estamos, dentro das possibilidades, fazendo a coisa certa para caminharmos em direção a este futuro desejado são elementos fundamentais de uma vida feliz.

Compaixão e amor encarnado em ações concretas - que buscam superar situações de opressão, dominação, marginalização, exploração ou exclusão que geram sofrimentos de tanta gente - são elementos fundamentais tanto para uma vida pessoal quanto para uma sociedade mais humana. Não se pode ser feliz sendo insensível a tanto sofrimento e dor.

É claro que não devemos cair na tentação e pressão de sermos perfeitamente compassivos e capazes de ações perfeitas e plenas para "salvar" o mundo. Só na medida em que aceitamos a nossa dificuldade é que poderemos viver e fazer o que podemos de fato.

Compaixão, responsabilidade e solidariedade são valores fundamentais para salvarmos o mundo e as nossas vidas do cinismo, da indiferença e da desumanização.

Mesmo que a nossa vida e o mundo não se transformem na intensidade e na velocidade dos nossos desejos, sabemos que nossas ações transformam ou modificam para melhor, não somente a vida de outras pessoas, mas também a nós mesmos.

Elie Wiesel nos oferece uma pérola do pensamento talmúdico sobre isto: "A caridade salva da morte. [...] O que é a caridade? Os vivos devem se preocupar com a tristeza ou doença do próximo. Quem não se preocupa não é realmente sensível; quem não é sensível não está realmente vivo. E este é o significado do apelo do shammash: a caridade nos livra de morrer em vida".

[Autor de, entre outros, "Um caminho espiritual para felicidade"].


* Professor de pós-grad. em Ciências da Religião da Univ. Metodista de S. Paulo e autor de Sementes de esperança: a fé em um mundo em crise

29 de novembro de 2007

Mulheres: Sem medo de denunciar*

*Por Iolanda Toshie Ide

Brutalmente assassinadas pelo ditador Rafael Leônidas Trujillo, da República Dominicana, as irmãs Mirabal Minerva, Maria Tereza e Pátria Mirabal são justamente lembradas pra marcar a campanha 16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres. Essa campanha inicia-se exatamente na data do assassinato delas: 25 de novembro (1960).
Às vésperas do início da edição anual desta campanha, a divulgação da informação de que uma jovem atirada à prisão para ser torturada por estupros por parte de presos na mesma cela causa indignação e merece um público e veemente repúdio.
Quando nos perguntam sobre os avanços conquistados pelas mulheres desde a segunda metade do século XX, nunca fizemos um balanço otimista. O aumento significativo do ingresso de mulheres nos cursos superiores e a participação no mundo do trabalho formal faz parecer que se avançou muito. No entanto, não engendrou salários iguais aos dos homens mesmo quando a escolaridade da mulher é maior, sem falar no peso da dupla jornada. Entretanto, como ocorreu em Abaetetuba (e não é só lá) é revoltante ver o estado lançar mulheres nas celas junto a vários homens sabendo que serão estupradas.
No início do horário de verão, um homem feriu a esposa por ela não ter atrasado o relógio. Um rapaz ameaçou invadir a escola onde estuda uma jovem que ele desejava que fosse sua namorada, ameaçando-a. Um outro rapaz, não quis aceitar o rompimento com a namorada. Foi até o município onde ela estudava, abordou-a na entrada da faculdade matando-a. Um homem chegou em casa, quebrou móveis e louças, empurrou a esposa e suas duas filhas (de menos de 10 anos de idade) para fora de casa e se trancou para dormir: as três ficaram na rua durante toda a noite.
Quantas mulheres, ao longo da história foram impedidas de votar e de estudar. Mas isto não é coisa do passado. No dia 6 de dezembro de 1989, um estudante irrompeu na Escola politécnica de Montreal (Canadá) e atirou nas mulheres. Não aceitava que as jovens adentrassem nos cursos de engenharia dizendo elas roubavam as vagas dos homens. Atirou furiosamente assassinando 14 mulheres. Daí surgiu a Campanha do Laço Branco pela qual homens se engajam mobilizando-se pelo fim da violência contra a mulher.
- a cada minuto, 4 mulheres são espancadas;- em cada 10 casos registrados, 7 têm como agressor o marido, namorado, ex-companheiro, pai e parentes;- a cada 9 segundos, uma mulher é ofendida na sua conduta sexual;
A campanha pelo fim da violência contra as mulheres que de 25 de novembro a 10 de dezembro ocorre simultaneamente em mais de 130 países, necessita, pois, de muita garra. A Secretaria Especial de Políticas para Mulheres disponibilizou o telefone gratuito 180 para orientar as mulheres, funcionando 24 horas, inclusive nos sábados e domingos.
O patriarcalismo ainda está vivo: houve juiz que ousasse pronunciar-se contra a Lei Maria da Penha (Lei nº11.340) considerando-a inconstitucional. Estamos nos empenhando na direção contrária, divulgando a lei, incentivando as mulheres para que denunciem seus agressores, sem medo. Quem deve ter medo é o agressor. É preciso que a Lei nº 11.340 saia do papel. Afinal, uma vida sem violência é nosso direito.

28 de novembro de 2007

A DOR QUE DÓI MAIS

Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói.
Torcer o tornozelo dói. Um tapa, um soco, um pontapé, dóem.
Dói bater a cabeça na quina da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim.
Mas o que mais dói é saudade.
Saudade de um irmão que mora longe.
Saudade de uma cachoeira da infância.
Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais.
Saudade do pai que já morreu.
Saudade de um amigo imaginário que nunca existiu.
Saudade de uma cidade.
Saudade da gente mesmo, quando se tinha mais audácia e menos cabelos brancos. Dóem essas saudades todas. Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama.
Saudade da pele, do cheiro, dos beijos. Saudade da presença, e até da ausência consentida.
Você podia ficar na sala e ele no quarto, sem se verem, mas sabiam-se lá. Você podia ir para o aeroporto e ele para o dentista, mas sabiam-se onde.
Você podia ficar o dia sem vê-lo, ele o dia sem vê-la, mas sabiam-se amanhã.
Mas quando o amor de um acaba, ao outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter.Saudade é não saber. Não saber mais se ele continua se gripando no inverno.
Não saber mais se ela continua clareando o cabelo.
Não saber se ele ainda usa a camisa que você deu.
Não saber se ela foi na consulta com o dermatologista como prometeu.
Não saber se ele tem comido frango de padaria, se ela tem assistido as aulas de inglês, se ele aprendeu a entrar na Internet, se ela aprendeu a estacionar entre dois carros, se ele continua fumando Carlton, se ela continua preferindo Pepsi, se ele continua sorrindo, se ela continua dançando, se ele continua pescando, se ela continua lhe amando.Saudade é não saber.
Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche.Saudade é não querer saber.
Não querer saber se ele está com outra, se ela está feliz, se ele está mais magro, se ela está mais bela.
Saudade é nunca mais querer saber de quem se ama, e ainda assim, doer.

Martha Medeiros

Quem Sabe um Dia

Quem Sabe um Dia
Quem sabe um dia
Quem sabe um seremos
Quem sabe um viveremos
Quem sabe um morreremos!
Quem é queQuem é macho
Quem é fêmeaQuem é humano, apenas!
Sabe amar
Sabe de mim e de si
Sabe de nósSabe ser um!
Um dia
Um mês
Um ano
Um(a) vida!
Sentir primeiro, pensar depois
Perdoar primeiro, julgar depois
Amar primeiro, educar depois
Esquecer primeiro, aprender depois
Libertar primeiro, ensinar depois
Alimentar primeiro, cantar depois
Possuir primeiro, contemplar depois
Agir primeiro, julgar depois
Navegar primeiro, aportar depois
Viver primeiro, morrer depois

Mário Quintana

27 de novembro de 2007

A espiritualidade no conflito

Antônio Mesquita Galvão*

As pessoas, em geral, têm dificuldade de compreender o sentido da palavra "espiritualidade". E é justamente por causa desse equívoco que não conseguem desenvolver adequadamente um cristianismo eficaz, de acordo com seu estado de vida. Muitos a confundem com "espiritismo" ou "espiritualismo" e apontam para algum modo de vida espiritual, sem saber conceituar nem tampouco ava-liar como se desenvolve esse tipo de vivência. Por ser a espiritualidade uma forma muito rica de relação com Deus, ela aponta para um estilo de vida. De vida cristã.
O grande desafio da espiritualidade cristã é compatibilizar uma vida voltada para os apelos do Espírito na ambigüidade da vida material a que todos estão sujeitos. Não é possível a ninguém, alienar-se de sua vida material, social, pro-fissional, familiar, política, etc. É justamente nessas circunstâncias de nossa existência que devemos nos encontrar com Deus, sem fugir do mundo, mas relacionando-nos com o Infinito conforme nosso estado de vida. Reside aí o de-safio: viver uma vida cristã, espiritualizada e voltada para o alto, sem furtar-se à vida material e à dimensão sócio-fraterna inerente a esse tipo de vida.
É fundamental que se insista na necessidade que os cristãos têm, cada vez mais, de descobrirem eles próprios os caminhos de sua espiritualidade, de a-cordo com a forma de vida abraçada por cada um, sem que um queira viver em sua vida o tipo de espiritualidade do outro, ou simplesmente se omitindo. Deus quer que eu me envolva com ele, sem, no entanto, fechar os olhos à injustiça que sofre o irmão, o vizinho, o companheiro de caminhada. Essa opressão é uma tônica gritante fora do âmbito das grandes capitais do Sul-Sudeste. Em tudo ocorrem conflitos e desacertos. Na psicologia, vemos conflito, segundo as teorias behavioristas, como um "estado provocado pela coexistência de dois es-tímulos que disparam reações mutuamente excludentes". Simplificando, há quem defina, igualmente como "profunda falta de entendimento entre duas ou mais partes". A vida humana, e a existência dos cristãos não está imune, ocor-re no meio dos conflitos.
No meio das comunidades, especialmente no interior do país, ocorre a grilagem e o choque com os posseiros, contrastando com o coronelismo, a extração irre-gular de madeira e minérios, a falta de demarcação de terras indígenas, amea-ças ao meio-ambiente, doenças e endemias tropicais, subemprego, violência (e não-raro mortes) contra sindicalistas, líderes comunitários e ministros da Igre-ja. Isto sem falar nos "reflorestamentos" de árvores que só produzem celulose, plantações de maconha, etc. A isto se soma a falta de saneamento básico, um sistema educacional deficiente e famílias que se desestruturam por problemas sociais, econômicos e de migração compulsória. Há, por causa desses conflitos, uma perda de fé e de referenciais humanos.
Tudo deve ter início, a partir da iluminação da fé, pela Palavra de Deus, numa formação bíblica e doutrinária adequada, assim como a descoberta de uma ní-tida consciência crítica, não jungida a outros modelos de vida cristã, mas ade-quados à vida concreta de cada pessoa, conforme sua missão no meio do mun-do. Sendo a espiritualidade a forma como nos relacionamos com Deus, é impor-tante que deixemos de lado certo tipo de cristianismo desvinculado com a vida e o mundo, demasiadamente angelista, sem o compromisso com as transfor-mações que o evangelho de Jesus não cansa de nos exortar.
Toda a religião vivida de modo alienado torna-se alienante, para quem a pratica e para tantos quantos interajam com pessoas que assim atuam. Além disto, a vivência de uma espiritualidade incoerente é capaz de, pelo negativo do teste-munho, desviar muitas pessoas do caminho reto, da amizade com Deus, da Igreja e do serviço aos irmãos. Os profetas davam alento ao povo sofredor por causa da coragem de seu testemunho e de suas denúncias.
Para quem conhece o Brasil fica a constatação da existência de um conflito, entre o ser-cristão de muitos e a figura paulina do "espírito do mundo". O con-flito se instala, muitas vezes, dentro das Igrejas, com motivação político-ideológica, social e por causa da busca da busca de poder, intentada por de-terminados grupos. Para quem, como eu, reside no Sul do país, onde se vive sob o foco de uma religião de corte germânico, burocrática, sacramentalista, demasiadamente hierárquica, que forma uma "Igreja sentada", estática, pouco missionária e, geralmente acomodada, muitas facetas do conflito passam des-percebidas. No Norte e Nordeste do Brasil viver a fé é estar no meio do conflito, pois os obstáculos, como a natureza hostil, as pressões políticas, o descaso ofi-cial e as ameaças dos poderes sociais criam nas pessoas, especialmente po-dres, humildes e sem voz, faz emergir a necessidade de um profetismo militan-te. A convivência com os negros e os índios, cada um segregados à sua manei-ra, a sobrevivência sob o tacão da opressão, seja ela representada pelo patrão, pelo senhor dos engenhos ou do latifúndio, impõe a cada um, certas necessi-dades de viver a fé, de relacionar-se com Deus, organizando-se, fomentando um espírito crítico, sem apelar para a violência e sem a tentação de quebrar os paradigmas da paz e do perdão. A própria Justiça, que em tese deveria ser ce-ga, dispensa a cada grupo um quinhão proporcional a sua representatividade social. Querendo devolver olho-por-olho as injustiças sofridas, muitos abando-nam a fé, por não saberem desenvolver uma "espiritualidade no conflito". Em alguns lugares do Brasil, os crentes vivem uma espiritualidade cômoda, sem riscos; em outros, têm que desenvolvê-la no meio do conflito.
Só uma espiritualidade discernida e orientada pela Palavra é capaz de nortear os rumos de quem insiste em ser cristão e viver sua fé no meio do conflito que, por exemplo, nas regiões mais ínvias, é permanente.

*Doutor em Teologia Moral


26 de novembro de 2007

Lula No País das Maravilhas II

Ética e Reforma Política

Frei Betto*

A "ética" neoliberal se reduz às virtudes privadas dos indivíduos. Ignora a visão de institucionalidade ética. Reforça, assim, a atitude paralisante do moralismo, que a reduz à ilusória perfeição individual. Ora, se a sociedade é estruturada, a ética é imprescindível para se configurar o mundo histórico. Portanto, exige uma teoria política normativa das instituições que regem a sociedade.
Não basta falar em ética na política. A crítica às instituições geradoras de injustiças e negadoras de direitos exige ética da política. Abrir espaços para a criação de novos direitos. As instituições devem garantir a justiça distributiva - a partilha dos bens a que todos têm direito -, e a justiça participativa, a presença de todos (democracia) no poder que decide os rumos da sociedade.
O grande desafio ético hoje é como criar instituições capazes de assegurar direitos universais. Isso supõe uma ruptura com a atual visão pós-moderna, neoliberal, de fragmentação do mundo e exacerbação egolátrica, individualista.
Ainda que o ser humano tenha defeito de fabricação e prazo de validade, o que o Gênesis chama de "pecado original", há que se instaurar uma institucionalidade política capaz de assegurar direitos e impedir ameaças à liberdade e à natureza. Isso implica suscitar uma nova cultura inibidora dessas ameaças, assim como ocorre hoje em relação à escravidão, embora ainda praticada.
De onde tirar valores éticos universalmente aceitos? Como levar as pessoas a se perguntarem por critérios e valores? Hans Küng sugere que uma base ética mínima deve ser buscada nas grandes tradições religiosas. Seria o modo de passarmos de éticas regionais a uma ética planetária. Mas como aplicá-la ao terreno político? Mudar primeiro a sociedade ou as pessoas? O ovo ou a galinha?
Inútil dar um passo atrás e fixar-se na utopia do controle do Estado como precondição para transformar a sociedade. É preciso, antes, transformar a sociedade através de conquistas dos movimentos sociais, e de gestos e símbolos que acentuem as raízes antipopulares do modelo neoliberal. Combinar as contradições de práticas cotidianas (empobrecimento progressivo da classe média, desemprego, disseminação das drogas, degradação do meio ambiente, preconceitos e discriminações) com grandes estratégias políticas.
É concessão à lógica autoritária admitir que o Estado seja o único lugar onde reside o poder. Este se alarga pela sociedade civil, os movimentos populares, as ONGs, a esfera da arte e da cultura, que incutem novos modos de pensar, de sentir e de agir, e modificam valores e representações ideológicas, inclusive religiosas.
"Não queremos conquistar o mundo, mas torná-lo novo", proclamam os zapatistas. Hoje, a luta não é apenas de uma classe contra a outra, mas de toda a sociedade contra um modelo perverso que faz da acumulação privada da riqueza a única razão de viver. A luta é da humanização contra a desumanização, da solidariedade contra a alienação, da vida contra a morte.
A crise da esquerda não resulta apenas da queda do Muro de Berlim. É também teórica e prática. Teórica, de quem enfrenta o desafio de construir um socialismo sem stalinismo, dogmatismo, sacralização de líderes e de estruturas políticas. E prática, de quem sabe que não há saída sem retomar o trabalho de base, reinventar a estrutura sindical, reativar o movimento estudantil, incluir em sua pauta as questões indígenas, étnicas, sexuais e ecológicas.
Neste mundo desesperançado, apenas a imaginação e a criatividade são capazes de livrar a juventude da inércia, a classe média do desalento, os excluídos do sofrido conformismo. Isso requer uma ideologia que resgate a ética humanista do socialismo de inspiração cristã e abandone toda interpretação escolástica da realidade. Sobretudo toda atitude que, em nome do combate à velha ordem, faz a esquerda agir mimeticamente ao incensar vaidades, apegar-se a funções de poder, ceder à corrupção, reforçar a antropofagia de grupos e tendências que se satisfazem em morder uns aos outros.
O pólo de referência de todos que pretendem alcançar "um outro mundo possível", em torno do qual precisam se unir, é somente um: os direitos dos pobres.


[Autor, em parceria com Paulo Freire e Ricardo Kotscho, de "Essa escola chamada vida" (Ática), entre outros livros].

Dois poemas

***
Outros ventos trouxeram nossas cicatrizes
Um suor me recobre, pesa nestes ombrosa flor de encontro dúbio. Assim perditanto em buscá-la, tanto em desfazer.
As mãos sobre as coxas, o sexo já confessado.
Tão poderosa e viva e assim tão puraa luminosidade dos azuis.
E aspirei contigo o perfume casto das cerejas,também desfeito. O matiz inseguro de tuas nuvens.
Fluorescência do âmbar:o segredo revelado, não te espantes.
E é o mesmo teu silêncio, amparando as estátuas.As que houvera na morte e o sonho de suas noites.



Os frutos
O tempo colhia os frutos sem alardena terra baixa, maduros de sementes.
Eu corria as ladeiras com meus olhosfreqüentes do passado, e as flores frias.
Dos muros de palavras retirávamosum punhado de hera, o cheiro seco.
Que invadia as manhãs pelas janelase nossos corações cheios de névoa.
Ele colhia os frutos. Nós, sem pressa,que o tempo madurou de outros silêncios.
Eu não me erguia ao alto da colinasobre um caixão de pedra, com medo.
De nosso território com seus prédiosenormes e homens baixos. Eles jogavam.


[Pablo Simpson]

22 de novembro de 2007

O lobby de católicos na Conferência Nacional de Saúde

Luiz Alberto Gómez de Souza*

Uma pressão de setores católicos, da CNBB à Pastoral da Criança, na 13ª Conferência Nacional de Saúde, encerrada em Brasília dia 18 de novembro, levou à rejeição de uma moção sobre a interrupção voluntária da gravidez. Isso faz lembrar os esforços, por anos, de setores católicos, liderados pelo deputado e padre Arruda Câmara, do PDC, contra o divórcio, embora este tenha sido posteriormente aprovado. No passado, setores oficiais da Igreja tinham feito campanhas contra a secularização dos cemitérios, pela obrigação de capelães nas Forças Armadas e pelo ensino religioso obrigatório, em debate acirrado com Anísio Teixeira e outros defensores da Escola Nova. Era sempre a dificuldade de aceitar uma sociedade pluralista e democrática, onde os princípios de uma religião não podem prevalecer sobre o conjunto da sociedade, com outros credos ou sem credo algum. Trata-se de uma postura intolerante, que encontramos até hoje em setores fundamentalistas do Islã dos aiatolás, dos integristas católicos ou do presidente Bush. Como leigo católico, quero manifestar aqui minha desconformidade diante de setores de minha própria Igreja.
Há muita confusão pelo caminho. Confunde-se descriminalização do aborto com a legalização do mesmo. O Uruguai, com forte tradição laica, acaba de aprovar a descriminalização. Mas, já faz anos, a Itália, considerada país católico, apesar de pressão do Vaticano, legalizou o aborto, assim como mais recentemente Portugal.
O ministro da Saúde propôs um amplo debate sobre o tema, considerando-o com razão um problema de saúde pública, além de ter implicações éticas. Opor-se a esse debate livre é uma atitude autoritária ou hipócrita, como definiu um funcionário do Ministério da Saúde. Estamos numa democracia e toda discussão é necessária, para criar uma opinião pública e reforçar a cidadania participante. Transcrevo parte da moção rejeitada: "Assegurar os direitos sexuais e reprodutivos, respeitar a autonomia das mulheres sobre seu corpo e reconhecer o aborto como problema de saúde pública e discutir sua descriminalização por meio de projeto de lei" (Proposta 37 do eixo 1). Vejam que o tema para discutir e preparar um futuro projeto de lei refere-se à descriminalização do aborto e não à sua legalização. Fica, aliás, um problema candente: como punir uma mulher que passou pela penosa, dolorosa, traumática e arriscada decisão?
A manchete de um jornal de 19 de novembro assinala: Aborto: Igreja derrota proposta do governo. Questão que nos encaminha ao ponto seguinte. Podemos dizer simplesmente Igreja, povo de Deus na definição do Vaticano II, em sua dimensão eclesial, ou deveríamos falar de setores eclesiásticos dominantes e oficiais? Não esqueçamos que a posição de Jesus nunca foi de aplicar leis punitivas, porém, cheio de misericórdia e de compaixão, fazer perguntas instigantes diante da mulher adúltera que ia ser lapidada ou, escandalizando os próprios discípulos, dialogar com a samaritana, que não seguia a religião dos judeus e que tinha tido sete homens em sua vida. As leis ficavam por conta dos fariseus formalistas.
Esse tema torna-se mais complexo, pois, se o analisarmos dentro da própria Igreja Católica, em todas as suas dimensões. Tenho falado inúmeras vezes de temas congelados dentro da mesma, que precisam ser reabertos ao debate, como o celibato obrigatório, a ordenação de homens casados e de mulheres - para permitir o acesso à Eucaristia a um número maior de fiéis - e os temas da sexualidade e da reprodução. Um bispo francês, Jacques Gaillot, que enfrentou esses temas foi afastado de sua diocese de Évreux e criou a diocese virtual de Partênia. O teólogo espanhol Juan Masiá, pela mesma razão, foi levado ao "silêncio obsequioso", como Leonardo Boff e Ivone Gebara, há uns anos atrás. Mudou-se para o Japão e um livro seu está sendo publicado em português (Encontros de bioética, Loyola, 2007). O debate está em pauta. Mas sabemos que antes de mudanças, aqueles que as temem, se fecham num rictus rígido, que não esconde uma posição defensiva, historicamente perdedora, contra a emergência do novo. Já no século XIX, um grande teólogo, convertido ao catolicismo, o futuro Cardeal J. H. Newman, falou do desenvolvimento da doutrina, que não é um legado imutável, mas que se vai desdobrando e esclarecendo aos poucos. Aliás, o mesmo teólogo, logo depois do concílio Vaticano I, quando foi definida a infalibilidade papal, isolada de uma visão de Igreja mais ampla (que o Vaticano II completaria, no documento De Ecclesia), escreveu a um amigo angustiado: "Pio (IX) não é o último dos papas... Tenhamos paciência e confiança, um novo papa e um novo concílio polirão a obra" (carta de 3/4/1871). Poderíamos aplicar a mesma observação aos dois últimos pontificados.
Há, muitas vezes, nos meios conservadores, uma grande ignorância histórica. Faz alguns anos, pelo Syllabus, Pio IX condenou a democracia e a liberdade de imprensa. Esse documento não foi revogado, mas sepultado num esquecimento incômodo. Como antes a Inquisição, com a tortura e a queima de hereges e também a condenação de Galileu (uma retratação chegou com enorme atraso). A posição violentamente anti-moderna de Pio X, no começo do século passado, foi desbloqueada por seu sucessor, Bento XV. O Papa Pio XII faria o elogio da democracia em Mensagens de Natal, ao final da Segunda Guerra e o Vaticano II (1962-1965) seria um grande diálogo com a modernidade. Ver seu documento Gaudium et Spes. A consciência histórica caminha e com ela também a consciência eclesial. A aprovação da pena de morte e a noção de guerra justa vão desaparecendo na doutrina e nas alocuções dos papas. Ver a posição firme de João Paulo II diante da guerra do Iraque. Em contraste com a de Bush, que teve de recorrer à mentira e à fraude (e mesmo de setores da cúria romana que quiseram amenizar, em declarações ambíguas, a posição do próprio papa).
A mesma falta de sensibilidade histórica pode ser aplicada a temas como a interrupção voluntária da gravidez e à utilização, em pesquisas, de células-tronco embrionárias. Nesses casos, é preciso distinguir entre embrião e feto, como fases diferenciadas de um processo. Para Santo Agostinho no século IV e Tomás de Aquino no século XIII, a "animação", isto é, a implantação da alma no ser em gestação, se daria depois de algumas semanas desde a concepção. A partir de 1869, porém, a posição oficial da Igreja até agora, tem sido de defender com vigor o direito à vida "desde a concepção até a morte". Hoje em dia admite-se como critério para definir a morte, a morte cerebral, ainda que o coração esteja pulsando; sem o que não haveria transplantes de órgãos, aos quais a Igreja não se opõe. Se isso se dá ao final da cadeia, por que não revisar, com critérios análogos, o início da mesma? Quando começa a pessoa humana no processo da gestação? Na concepção inicial ou na criação do córtex cerebral? Questões em aberto em meios teológicos (Küng, Forcano, Louise Melançon, entre outros). Tema a ser debatido com lucidez e tranqüilidade numa Igreja que deveria rever-se permanentemente diante de tantos desafios sempre renovados. Há atualmente uma esquizofrenia entre prescrições oficiais sobre a reprodução humana (Casti Connubii, Pio XI, 1930; Humanae Vitae , Paulo VI, 1968) e a prática dos católicos (ex. caso dos preservativos). Na África, religiosos e religiosas distribuem camisinhas diante de uma terrível endemia de Aids.
Há que poder participar de um debate livre e corajoso. Na Igreja, muitos teólogos estão com dificuldade de entrar nele, por medo de perder sua licença de ensinar em estabelecimentos católicos (em termos técnicos, a partir de uma autoridade que inibe a reflexão livre e responsável, isto se chama, em latim, missio canonica). Tal decisão abateu-se sobre Hans Küng, que passou depois a ensinar em Tubinga teologia ecumênica.
Sempre que posso defendo o que o governo vem fazendo e aplaudo calorosamente a gestão do ministro Temporão. Mas tenho dificuldade de entender, em sentido contrário, a última nomeação governamental para o STF de Carlos Alberto Direito que, antes de tomar posse, pré-julgando, se declarou contra o aborto e o uso de células-tronco embrionárias. O presidente Bush, na mesma direção, vem nomeando ministros conservadores no Supremo americano, para voltar atrás na legislação a esse respeito. Aliás, nós que criamos a Ação Popular em 1962, com a inspiração do personalismo comunitário de Emmanuel Mounier e a opção de um socialismo democrático, encontramos então o atual ministro do STF, na política estudantil, numa posição oposta e conservadora. Parece que ele foi indicado por pressão de setores católicos tradicionais e de seu amigo Moreira Franco (pasmem, este foi da AP, assim como o candidato presidencial derrotado José Serra). Curiosos são os caminhos enviesados da história...
Volto ao começo. Sinto-me na obrigação de expressar, como católico, meu mal-estar pela maneira como o problema vem sendo abordado por setores oficiais de minha Igreja. Termino com a introdução que escrevi a meu livro de 2004, Do Vaticano II a um novo concílio? Olhar de um cristão leigo sobre a Igreja (Loyola, 2004): "Muitas décadas de atividades eclesiais como cristão leigo - meio século!- dão-me o direito de ser franco, honesto e direto, tentando varrer uma auto-censura tão comum nos meios eclesiásticos prudentes e sujeitos a sanções autoritárias. ... (essa atitude) quer ser a expressão de uma fidelidade impaciente ou de uma rebeldia filial, de quem se sente profundamente comprometido com a Igreja de Cristo que, dividida, frágil e tantas vezes incoerente, não deixa de ser ‘o Reino em germe’ (de Lubac), ‘a presença urgente, a presença importuna de Deus entre nós’ ".


*Sociólogo e ex-funcionário das Nações Unidas, é Diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência e Religião da Universidade Candido Mendes

16 de novembro de 2007

Retirada sustentável

Leonardo Boff*

Aos grandes meios de comunicação passou despercebido o impressionante discurso que o Presidente da Bolívia Evo Morales fez em outubro nas Nações Unidas. Falou menos como chefe de Estado e mais como um líder indígena, cuja visão da Terra e dos problemas ambientais está em claro confronto com o sistema mundial imperante. Denuncia sem rodeios: "a doença da Terra chama-se modelo de desenvolvimento capitalista" que permite a perversidade de "três famílias possuírem ingressos superiores ao PIB dos 48 paises mais pobres" e que faz com que "os Estados Unidos e a Europa consumam em média 8,4 vezes mais do que a média mundial". E fez uma ponderação sábia e de graves conseqüências: "perante esta situação, nós, os povos indígenas e os habitantes humildes e honestos deste Planeta, acreditamos que chegou a hora de fazer uma parada para reencontrarmos as nossas raízes com respeito à Mãe Terra, com a Pachamama como a chamamos nos Andes".
O alarme ecológico provocado pelo aquecimento global já iniciado deve produzir este primeiro efeito: fazermos uma parada para repensarmos o caminho até agora andado e criarmos novos padrões que nos permitam continuar juntos e vivos neste pequeno planeta. Temos, sim, que reencontrar nossas raízes terrenais. Urge que reconquistemos a consciência de que homem vem de humus (terra fecunda) e que Adão vem de Adamah (terra fértil). Somos Terra que sente, pensa, ama e venera. E agora, devido a um percurso civilizatório de alto risco, montado sobre a ilimitada exploração de todos os recursos da Terra e da vontade desenfreada de dominação sobre a natureza e sobre os outros, chegamos a um ponto crítico em que a sobrevivência humana corre perigo.
Assim como está não podemos continuar, caso contrário, iremos ao encontro de nossa própria destruição. Ainda recentemente observava Gorbachev: "precisamos de um novo paradigma civilizatório porque o atual chegou ao seu fim e exauriu suas possibilidades; temos que chegar a um consenso sobre novos valores ou em 30 ou 40 anos a Terra poderá existir sem nós". Conseguiremos um consenso mínimo quando sabemos que o capitalismo e a ecologia obedecem a duas lógicas contrárias? O primeiro se preocupa em como ganhar mais dominando a natureza e buscando o benefício econômico e a ecologia como produzir e viver em harmonia com a natureza e com todos os seres. Há aqui uma incompatibilidade de base. Ou o capitalismo se nega a si mesmo e assim cria espaço para o modo sustentável de viver ou então nos levará fatalmente ao destino dos dinossauros.
Mas somos confiantes como Evo Morales que em seu discurso enfatizou: "tenho absoluta confiança no ser humano, na sua capacidade de raciocinar,de aprender com seus erros, de recuperar as suas raízes e de mudar para a reconstrução de um mundo justo, diverso, inclusivo, equilibrado e harmônico com a natureza".
Consola-nos a sentença do poeta alemão Hölderin: "Quando grande é o perigo, grande é também a chance de salvação". Quando, dentro de anos, atingirmos o coração da crise e tudo estiver em jogo, então valerá o máxima da sabedoria ancestral e do cristianismo dos primórdios:"em caso de extrema necessidade, tudo se torna comum". Capitais, saberes e haveres serão participados por todos para poder salvar a todos. E nos salvaremos, com a Terra.


*Teólogo e professor emérito de ética da UERJ

13 de novembro de 2007

Refundar a República para todos

Marcelo Barros *

Ao recordar a proclamação da República, neste 15 de novembro, muitos brasileiros se dão conta de que o atual modelo político, de caráter representativo eleitoral, embora hoje continue vigente na maior parte dos países do mundo, está em crise e precisa urgentemente ser refundado, em bases novas e mais verdadeiramente democráticas. Intelectuais prestigiados em todo o mundo como Noam Chomsky, José Saramago, Zigmunt Bauman e mesmo um cômico de TV italiana como Beppe Grillo revelam o que qualquer cidadão pode constatar: o divórcio entre o poder e a política tem aumentado, como também a distância entre o Estado e a sociedade civil. Os partidos que, em outro tempo, representavam linhas de pensamento na sociedade, hoje, significam uma dança nômade de siglas indecifráveis que acabam encobrindo, quase todas elas, o mesmo tipo de política baseada nos privilégios de quem está no poder e no interesse econômico de grandes grupos nacionais e internacionais. Neste quadro, as decisões políticas são mais tomadas por corporações financeiras do que pelos políticos que o povo elege. Existem políticos honestos e consagrados ao povo, mas o modelo que acaba se impondo nos meios de comunicação é dos que fazem política como negócio particular. O Estado, sempre mais diminuído de suas funções, nem parece mais capaz de garantir a segurança mínima e os direitos convencionais para seus cidadãos. Na maioria dos casos, o papel dos cidadãos acaba restrito a votar em representantes que se comunicam com seus eleitores a cada quatro anos, quando precisam do seu voto.
O panorama das próximas eleições presidenciais nos Estados Unidos revela uma enorme abstenção dos eleitores, assim como a profunda desesperança da população com este modelo. Ao mesmo tempo que existe a consciência de que a modernidade "líquida" (expressão do sociólogo Zigmunt Bauman) produz estruturas políticas que também se liquidificam, não se tem ainda um modelo alternativo delineado para o qual possamos migrar com segurança.
Neste sábado 10 de novembro, em Santiago do Chile, encerrou-se o encontro dos governantes e representantes de todos os povos da América Latina sobre a integração do continente. Ao mesmo tempo que ocorreu o encontro de cúpula, as organizações indígenas e muitos grupos sociais fizeram um encontro para discutir os mesmos temas e propor soluções a partir das bases. Eram mais de duas mil pessoas de todos os países da América Latina e as conclusões estão à disposição de todos na internet em um documento chamado "Manifesto de Santiago". Ali todos concordam que, no continente, está ocorrendo um fenômeno novo. Existe o começo de um processo social e político novo a partir da organização dos povos indígenas e de sua articulação internacional. Pela primeira vez, no continente, o sonho que o libertador Simon Bolívar tinha de formar uma "grande pátria latino-americana" começa a se consolidar, a partir do respeito à autonomia política de cada Estado soberano, mas através de uma solidariedade que nos permita enfrentar o colonialismo que, durante 500 anos, manteve nossos povos como escravos e dependentes. Agora, estes povos empobrecidos não aceitam mais ser considerados cidadãos apenas pelo direito de votar. Querem ser sujeitos e protagonistas dos seus destinos e não somente ter uma democracia eleitoral e representativa, mas um verdadeiro processo democrático social e econômico que permita ao povo conquistar o direito de viver na sua terra, ter trabalho digno e garantir educação e dignidade de vida para seus filhos.
Na carta de introdução à Agenda Latino-americana de 2008, Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia, diz: "Temos de fazer da política um exercício básico de cidadania. A cidadania é o reconhecimento político dos direitos humanos. Porque somos humanidade, somos sociedade. O filósofo italiano Giorgio Agamben afirma: "A separação entre o humano e o político que vivemos na atualidade é a fase extrema da excisão entre os direitos do homem e os direitos do cidadão".
Assim como ainda há quem ensine na escola uma história protagonizada por heróis individuais (Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil, Dom Pedro I fez a independência e o Marechal Deodoro proclamou a República), sem se dar conta dos movimentos comunitários e sociais que possibilitaram estas mudanças, também hoje, há quem veja a integração latino-americana como politicagem de líderes populistas ou até ditatoriais.
Organismos internacionais da ONU têm reconhecido oficialmente a honestidade dos processos eleitorais democráticos nas recentes eleições, tanto na Venezuela, como na Bolívia e no Equador. Têm dado prêmios internacionais aos esforços para consolidar um atendimento de saúde que atinja a todo o povo pobre. Valorizam a vitória da alfabetização de adultos e educação popular que avança em vários paises do continente. Para consolidar isso, vários países votaram por reformar a sua Constituição. Este processo une o Congresso Nacional, organizações indígenas e entidades da sociedade civil, em um processo de diálogo nacional novo. Um jornalista do Le Monde Diplomatique, escutou de uma velha índia em uma aldeia dos Andes: "Estou aprendendo a ler para discutir as leis e colaborar com a nova Constituição do país".
No Brasil, os movimentos sociais e camadas mais pobres da população começam a se mobilizar por uma maior participação das bases e por uma justiça social mais estrutural. Foi este anseio que se sentiu entre os quase seis mil participantes do 6º Encontro nacional do Movimento Fé e Política que, em Nova Iguaçu, RJ, reuniu neste final de semana, (10 e 11/11/2007), cristãos e militantes sociais, ligados a várias Igrejas cristãs, como também a grupos religiosos populares. Divididas em mais de vinte plenários temáticos, as pessoas puderam expressar suas convicções e esperanças. Uma conclusão comum foi a urgência de fortalecer a consciência de pertencermos todos a América Latina e participarmos juntos deste caminho de libertação e integração continental.
Isso pode parecer vago e utópico. Entretanto, é esta capacidade de utopia que permite a resistência e fortalece a confiança de que o povo é capaz de transformar a realidade. Oscar Wilde dizia: "Um mapa-mundi que não inclua a utopia não vale a pena nem olhar, pois deixa de fora o único país em que a humanidade está sempre desembarcando. E quando a humanidade lá desembarca, ela olha em volta e, ao ver um país melhor, iça as velas. O progresso é a realização das utopias".


* Monge beneditino